Parte 1 — João
Batista Stabile
No seu confortável
apartamento, num bairro de classe média alta na cidade do Rio de Janeiro, Maria
da Conceição olhava o espelho. Ela não via uma senhora de 83 anos, mas a jovem
que aos 18 anos de idade travou uma verdadeira batalha contra os padrões
sociais da época, em nome de um ideal.
Enfrentou o
preconceito de uma sociedade — que naquele tempo era mais machista que hoje, e
o de uma tradicional família de imigrantes italianos, principalmente por parte
de seu pai, um renomado médico, diretor de um hospital, numa cidade de grande
porte no interior do Estado de São Paulo. Ambicioso e autoritário, o pai a tratava
como a uma criança. Tinha em seu desfavor o fato de ser mulher e a caçula de
cinco irmãos, sendo o mais velho também médico, e os outros três encaminhados
profissionalmente, com as bênçãos do pai.
Maria da Conceição
pôde contar apenas com o apoio de uma pessoa: a avó paterna, sua confidente
desde criança, e cúmplice no seu plano de desviar-se do destino traçado por seu
pai, que era o de mandá-la à capital de São Paulo, para ingressar na
universidade e se preparar para a carreira acadêmica, como professora
universitária. Sua mãe, apesar de em segredo torcer por ela, não teve coragem de
se indispor com o marido, manteve-se neutra.
Quando num jantar
de família ela comunicou a todos o que há muito vinha pensando, foi um
alvoroço. Tentaram de todas as formas demovê-la de seu intento, até ameaças
recebeu, mas não cedeu nem um milímetro. Buscava forças no olhar discreto, mas
expressivo de sua protetora. Por fim, contra a vontade de todos, menos da avó
que a ajudou com dinheiro de suas economias, partiu para o Rio de Janeiro em
busca de realizar seu sonho....
Parte 2 — Marina
Alves
Da janela do trem,
Maria da Conceição vislumbrou as primeiras paisagens da belíssima metrópole,
onde pretendia viver dali por diante. Ali estava seu mundo, sua vida e nada a
faria mudar de ideia, ou voltar atrás: o Rio de Janeiro abrigava tudo que
queria para si desde muito cedo, quando folheava as revistas que a mãe
assinava. Ali haveria de realizar seus mais ousados desejos! E foi pensando
nisso que ela saltou na estação e chamou o carro de aluguel que a levaria ao
endereço que a avó secretamente lhe havia confiado na véspera de sua partida,
quando conversaram por longo tempo a portas fechadas. Duas horas depois ela
saltava à porta de um pequeno sobrado onde se lia “Há vagas para moças” e
apresentava-se ao senhorio:
— Con Ricceli! —
disse estendendo a mão direita para cumprimentar o homem baixinho e atarracado
que viera atendê-la.
Após acomodar os
poucos pertences da pequena mala e tomar uma boa chuveirada para descansar o
corpo cansado da viagem, a moça sentou-se numa cadeira de palhinha postada ao
lado da cama. Retirou da maleta de mão um espelho oval, com cabo de madrepérola
que a avó lhe dera também na véspera. Olhou-se demoradamente e o que viu a
deixou muito satisfeita: cabelos louros cacheados, o lindo rosto de pele fina e
branca, olhos claros de uma limpidez espantosa, a boca de lábios cheios e bem
desenhados, sobrancelhas espessas e bem traçadas, conforme os ditames da moda.
Não havia dúvida: Con Ricceli — que era como seria chamada e reconhecida dali
por diante, era uma mulher lindíssima. Sim! A beleza lhe abriria as portas do
sucesso... Além, é claro, da voz, seu mais caro e poderoso atributo! Sorriu
para si, refletindo no espelho a fileira de pérolas dos dentes perfeitos. A
vida era bela! E ela também!
Após uma noite de
sono repousante, em que evitou pensar no que deixara para trás, Con levantou-se
com uma disposição que não sentia, há anos. Arrumou-se com extremado zelo, vestindo
o que tinha de melhor. Chamou um carro, desta vez, para levá-la a outro
endereço cuidadosamente pesquisado e anotado em sua cadernetinha azul: o da
Rádio Litoral...
Parte 3 — Celêdian
Em pouco mais de
meia hora lá estava ela, fascinada, diante daquele prédio que nada tinha de
imponente, mas por estar diante da possibilidade de realizar o que sempre
sonhara. Con ficou alguns minutos ali parada, tomando coragem para entrar. Já
na portaria se deparou com o primeiro obstáculo: ao se apresentar e dizer que
precisava falar com Cassiano Duarte, foi questionada pelo porteiro, se havia
marcado entrevista e por quem havia sido indicada. Ao responder que não marcara
e que não havia nenhuma indicação, que estava ali pelo anúncio de um show de
calouros, recebeu dele uma resposta seca e nada amistosa, que as inscrições já
estavam encerradas e que não conseguiria falar com o famoso Radialista. Ela
agradeceu e saiu dali desolada, mas sem desistir de achar uma saída, pensaria
em alguma estratégia e voltaria a Rádio. Andou a esmo pela Cidade Maravilhosa
horas a fio, observando tudo à sua volta, deslumbrada com tantas novidades.
Retornou exausta à pensão. Dormiu mal, pois ficara maquinando ideias do que
poderia fazer.
No dia seguinte,
bem cedo, aprontou-se e decidida voltou a Rádio. Levava consigo um bilhete que
ela mesma escrevera e no qual simulava a recomendação de alguém importante, um
nome famoso que por acaso ouvira em um programa de rádio. Por sorte, o porteiro
não era o mesmo do dia anterior e enquanto ele fazia-lhe as mesmas perguntas do
anterior, mostrou-lhe o bilhete e ele prontamente, sem nenhuma resistência a
mais, a encaminhou à presença de Senhor Cassiano.
Ao vê-lo, ficou
espantada, pois esperava encontrar alguém mais velho, mas era um rapaz que
aparentava aproximadamente 30 anos, muito magro, pálido e com os cabelos mal
arrumados. De cabeça baixa, vendo alguns papéis e sem sequer fitá-la, ele
perguntou a Con do que se tratava a sua visita. Ainda meio desconcertada, optou
por não continuar mentindo e afobadamente contou-lhe sobre o falso bilhete que
forjara e também uma breve história sobre a relutância da família pela sua
decisão de tornar-se cantora. Contou também que viera do interior de São Paulo atraída
pelo anúncio do show de calouros, mas encerradas as inscrições ficou sem rumo,
pois tratava-se da grande oportunidade de sua vida, de mostrar o seu talento
musical. Foi então que Cassiano a olhou pela primeira vez, e extasiado pela sua
beleza, perguntou qual o seu nome e a sua idade. Con, ainda de pé diante dele,
sentiu-se um pouco constrangida com aquele olhar perplexo que parecia
desnudá-la, mas que ao mesmo tempo revelava certa ternura. Ele, ainda sem saber
exatamente o que decidir, disse a ela que voltasse no dia seguinte e que veria
o que poderia fazer. Ela agradeceu efusivamente e saiu dali direto para a
pensão, sabia que seria um longo dia e uma longa noite de muita ansiedade.
Amanheceu, e Con
tratou de vestir a sua melhor roupa, de pentear-se com esmero, de passar o seu
batom preferido e lá se foi em busca de seu destino. Só não contava com uma
surpresa que tomou conhecimento ao chegar a Rádio...
Parte 4 — Maria do Rosário
Chegando ao hall
de entrada, foi recebida pelo mesmo porteiro do dia anterior que a informou da
mudança do local do ensaio para o programa e que ela estaria entre os
selecionados, se fizesse uma boa apresentação. Con sentiu o coração bater
forte, apanhou o papel com o endereço e novamente entrou num táxi que a levou
ao seu destino. Achou estranho o silêncio e o vazio do lugar, mas tomou o
elevador e subiu para o sexto andar, onde seria o ensaio. Ali chegando, tocou a
campainha, a porta se abriu e do outro lado lá estava Cassiano, com um olhar
bem mais atencioso que o do dia anterior. Convidou-a a entrar e ela estranhou
não ver mais ninguém. Perguntou se seria ali mesmo o ensaio do programa, ao que
ele respondeu com um sorriso enigmático que havia reservado uma audição apenas
para ela. Con sentiu-se desconfortável com a resposta, olhou para os lados e,
de repente, seu olhar doce e sereno foi ganhando traços de desconfiança e medo.
Percebendo a sua reação, Cassiano disse que poderia ficar à vontade, que dali a
pouco chegaria um pianista para acompanhá-la, que deveria estar atrasado. Pediu
que ela se sentasse, o que ela fez, meio a contragosto. Passados alguns
minutos, em que um silêncio estranho pairava no ar, Cassiano começou a
perguntar de sua vida, de onde viera, que planos tinha para o futuro. Ela
começou a falar de si meio timidamente, mas aos poucos foi se revelando,
deixando que ele conhecesse um pouco do seu perfil, sem entrar muito em
detalhes. Pouco a pouco, ele foi se aproximando, e sem que ela esperasse, de
repente, pegou uma de suas mãos. Ao ver seu olhar assustado, falou calmamente:
— Calma, menina
linda! Só quero ver se você tem mãos de fada ou de musicista. Toca algum
instrumento ou apenas canta?
— Apenas piano,
mas prefiro só cantar. É meu sonho, desde menina, ser uma grande cantora, um
dia. Vim para o Rio em busca de uma carreira no ramo da música. Será que vamos
demorar?
— Bem, vou ser
franco com você. Não estamos esperando ninguém. Pedi que viesse aqui porque
queria vê-la, sozinho. Percebi que é uma boa moça e não queria que você fosse
exposta em meio a uma centena de calouros e jurados sem paciência para quem
está começando. Queria que você cantasse sozinha para mim. É possível?
Cassiano a olhou
de um jeito tão terno e ansioso, que ela, de repente, sentiu-se um pouco mais
aliviada e mais à vontade. Mostrou-lhe o
piano no fundo da sala, e ela timidamente começou a soltar as primeiras notas.
Quando definiu o que queria, soltou a voz devagarinho. E, de repente, a música Lábios de Mel ecoou pela sala, primeiro
baixinho, depois até superando a interpretação maravilhosa que ele ouvira da
cantora Ângela Maria. Ele a ouviu emocionado, e ficou sem palavras quando o
último acorde trouxe o silêncio de volta.
— Menina, estou
maravilhado! Meu sexto sentido estava certíssimo quando não me deixou lhe expor
no teatro da Rádio. Você nasceu para cantar. Não acredito no que acabei de ver
e ouvir. Você tem uma voz de anjo, com a força de uma leoa cantando. Nem sei o
que dizer.
Con ouvia
constrangida, meio encabulada, mas já se sentindo encorajada pelo entusiasmo do
Radialista. Resolveram sair e combinar o programa, e foram andando juntos pela
avenida, enquanto esperavam um táxi. Ele a convidou para um café, já que estava
ficando tarde, e ela aceitou. Conversaram no café como se já se conhecessem há
muito tempo e, de repente, ela se assustou ao sentir que estava começando a se
sentir atraída por ele. “Deve ser
natural isso, pensou. Ele está me ajudando a realizar um sonho, gostou da minha
voz e isso está despertando minha simpatia. Para Cassiano Duarte, eu devo ser
só mais uma que ele ajuda na carreira artística”.
Mas não era. Desde
o primeiro programa, Cassiano mostrou-se totalmente atencioso com ela, pedia
que ela o esperasse até terminar seu horário e sempre iam almoçar juntos, ou
passear para que ele lhe mostrasse a Cidade Maravilhosa. Quando percebeu,
estavam namorando. Ele apaixonado pela sua beleza, simplicidade e talento, e
ela, pela atenção e carinho que ele demonstrou, desde o primeiro encontro. Tudo
ia bem, até que Con recebeu o convite para gravar o primeiro compacto. Ela
correu ao encontro dele para contar a grande novidade, mas a expressão que viu em
seu olhar a desarmou e a deixou sem palavras:
— Jamais, Con!!
Nossa vida está ótima como está, nós dois estamos a cada dia mais apaixonados,
quero construir minha vida ao seu lado. Você é tudo que sonhei, mas não quero
dividir minha futura esposa com o palco, seja do que for. Quero que você cante
só para mim, no nosso círculo de amizades. Não quero que você perca essa
ternura e essa pureza na sujeira do mundo artístico. Você não sabe como é a
vida de quem entra nesse círculo vicioso, em que a rivalidade impera e cada um
quer passar por cima do outro. A luta pelo sucesso é cheia de espinhos e eu não
vou deixar você se machucar.
Ela ficou em
silêncio, sem saber o que dizer, mas sentiu o chão fugir-lhe aos pés, quando
ouviu palavra por palavra. Como ele podia estar falando assim, se sabia que o
motivo de sua vinda para o Rio era a luta pela carreira? Como podia, de repente,
sentir-se dono do seu destino? Olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas e
sentiu o coração explodir, porque sabia que das suas palavras dependia seu
destino...
Final — João Batista Stabile
Con disse secamente:
— Amanhã
conversamos sobre isso! — e foi embora.
Eles namoravam
havia quatro anos, ela morava num modesto apartamento. Já em casa, Con não
conseguia acreditar no que estava acontecendo, e pensava: “Eu não briguei com
toda a minha família e com alguns amigos que não aprovaram minha decisão, para chegar
aqui e outro homem controlar minha vida. Isso nunca!”. Dormiu mal naquela
noite, mas acordou decidida: “Se é esse o preço, vou pagar!”.
No caminho para a
Rádio em que Cassiano trabalhava, ela ia pensando e juntando as coisas. Ele
sabia que seu objetivo era se apresentar num programa da Rádio Nacional. No
entanto, não demonstrava interesse nisso, sempre com a desculpa de que queria
prepará-la primeiro, pois a concorrência era grande e não queria que fracassasse.
Com isso, ia levando-a com algumas apresentações em outras Rádios, cantando em
boates ou em festas com os amigos dele, que ela acabara conhecendo. E sempre
que tinha uma oportunidade dava a entender que ela deveria continuar assim, que
o caminho da fama era muito perigoso e não o agradava.
Con Ricceli chegou decidida e disse sem rodeios, antes que
fraquejasse:
— Cassiano, eu não
admito que você decida por mim. Vim para o Rio de Janeiro com o objetivo de ser
uma cantora de Rádio, profissional. Vou conseguir isso, com ou sem você, essa é
a única decisão que lhe cabe. Disse isso com o coração apertado, pois o amava.
Ele, surpreso com
a determinação da moça, ficou sem reação. Pensando que ela iria voltar e
suplicar sua ajuda, disse apenas:
— Está bem! Se é
isso que você quer... Siga em frente, se conseguir! Mas não conte comigo, nosso
relacionamento acaba aqui.
Foi a última vez
que conversaram. Ela, mesmo sofrendo não voltou atrás. Foi mais difícil dali
por diante, pois algumas portas se fecharam com o fim do relacionamento, mas gravou
o LP, e manteve-se firme no seu propósito de cantar na Rádio Nacional.
Con mantinha a avó
informada, por carta, de tudo que lhe acontecia. Quando ela já estava meio
cansada daquela peregrinação por Rádios e shows, um golpe de sorte fez com que
conhecesse nada menos que a estrela do Rádio, Ângela Maria. Encontrou-a, por
acaso, num café, e nem se lembrava direito como foi, mas conseguiu contar sua
história e deu-lhe um disco de presente. Ângela prometeu que iria ouvir com
carinho, que a procurasse dentro de três dias. Con Ricceli foi para casa,
maravilhada. Não acreditava que tinha conhecido pessoalmente a famosa cantora.
Passados os três dias, foi procurá-la. Ângela Maria a tratou com cortesia e
disse:
— Você é uma
lutadora como eu. Gostei do seu disco, vou apresentá-la a um amigo que tem um
programa na Rádio Nacional, daí para frente é por sua conta.
Foi a partir daí
que as coisas melhoraram. Ela conseguiu um contrato com a Rádio Nacional,
vieram outros LPs. Enfim, a fama! Em pouco tempo, tornou-se a sensação do Rádio,
concentrou-se em sua carreira fechando seu coração para o amor. Até teve alguns
envolvimentos com outros homens, mas nada sério, não suportava que se metessem
em sua vida.
Um dia, passado um
tempo, Con recebeu uma carta de sua mãe comunicando o falecimento de sua avó. Mas
dizia para não ficar triste, que ela morrera feliz, sabendo que sua neta preferida
era uma famosa cantora de Rádio. Dizia ainda a carta que seu pai, agora
aposentado, todas as noites após o jantar, sentava-se em sua poltrona, para
ouvi-la cantar no Rádio, ou mesmo na vitrola tocando seus discos. E que por
várias vezes o viu com o rosto banhado de lágrimas que poderiam ser de
arrependimento, saudade ou orgulho.
Con Ricceli, ainda
olhando no espelho oval de cabo de madrepérola, presente da sua querida avó,
pensava: “Paguei um alto preço por tudo isso, pois gostaria de ter tido marido
e filhos, uma família como outras cantoras têm”. Mas ao mesmo tempo, pensava:
“A vida é feita de escolhas e eu fiz a minha! Não me arrependo de nada que fiz.
Se pudesse voltar no tempo faria tudo novamente se necessário fosse”.
Autores: Autores: João Batista Stabile, Marina Alves, Celêdian Assis e Maria do Rosário.
Um comentário:
Parabéns a todos os colegas do grupo GANDAVOS CONTADORES DE HISTÓRIAS e em especial a esse minigrupo de bons criadores de causos. abraço geral
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