domingo, 30 de setembro de 2012

Memorial de Tiziu - Autor: Rangel Alves da Costa

 
Graças a Deus esses homens que contam, recontam e inventam histórias esqueceram de mim. Graças ao meu bom anjo sertanejo que em nenhuma dessas páginas de livros que tratam sobre o cangaço e o Capitão Lampião fala em meu nome, diz que eu estava lá na beira do rio naquela triste manhã da carnificina.
Mas eu estava lá sim, estava na Gruta do Angico sim senhor, e tanto estava que ainda na noite anterior do acontecido, no dia 27 de julho, lembro muito bem, noite de lua bonita, bem vistosa no negrume sertanejo, passei a ter maus pressentimentos, como se uma coisa me dissesse que estavam aprontando alguma coisa contra a gente do outro lado do rio.
Hoje sei que não estava errado não, pois realmente os homens da volante alagoana já estavam planejando o que fazer ainda no dia anterior. Eu já vinha ouvindo umas conversas que os macacos podiam mesmo estar por ali, por perto, no encalço do bando do Capitão. O problema é que se Lampião, ainda que com tanto disse-me-disse, com informações dos coiteiros, insistia em continuar no lugar, então não havia o que se fazer.
Achei muito estranho quando já noitinha fechada Lampião pegou Maria Bonita pelo braço e foram sentar em cima de um lajedo grande, uma pedra imensa que dava certinho em direção ao rio São Francisco mais adiante. Não olhava diretamente não, mas pelo canto do olho percebia que conversavam entristecidamente, como se os namorados do sertão sangrento estivessem temendo ser separados pela força do inimigo.
Depois andaram dizendo que Maria até chorou nesse momento, implorando para que se arribassem dali naquele mesmo instante, pois temia que não tivessem mais a noite seguinte para admirar a lua por cima das catingueiras. Coisa de destino marcado, mas quem ouvia sua companheira em tudo, daquela vez relutou, disse que estavam seguros ali e que brevemente procurariam um lugar para descansar em paz e deixar aquela vida de correria de um lado pra outro e de tanto sofrimento.
Vi quando voltaram da pedra e foram em direção à gruta, uma abertura na pedra que mal dava para os dois estirados. Fiquei por ali ao redor, um pouco mais adiante sentado numa pedrinha pequena. Ninguém podia acender fogueira pra não dar sinal da presença do bando ali, cantoria só se fosse muito baixa, sanfona quase silenciosa. Diferentemente de outras noites de tanta animação e conversas, aquela noite se mostrava muito diferente das demais. Noite noite mesmo, noite fechada, triste, angustiosa, desesperadamente amedrontadora. Era a noite da despedida, a noite antecedendo a morte, a noite sem dia seguinte.
Cangaceiro animado chegou perto de mim e disse que estava angustiado demais, que não via a hora dessa noite passar voando; cangaceiro otimista sentou ali pertinho e disse que não via a hora de deixar aquela vida desassossegada, recomeçar a vida, voltar pra família; cangaceiro realista sentou mais adiante e disse que do jeito que estavam de corpo aberto, quase num descampado de beira de rio, na hora que a polícia quisesse acabava com tudo. Eu disse ao amigo que não dissesse isso não, que tivesse fé em Deus. Mas eu sabia que ele tinha razão. E como teve.
Naquela noite, afastei uns gravetos do chão espinhento, estirei o meu corpo no chão, fiz de uma pedra um travesseiro, mas não consegui fechar o olho um instante sequer. De cinco em cinco minutos eu me erguia um pouco e olhava para as águas do rio, para o meio do rio e mais adiante, na escuridão do outro lado, que era para ver se enxergava alguma coisa que pudesse atacar o bando.
Numa dessas vezes vi uma luzinha fraquinha ao longe, coisa que me deixou cismado, mas fiz de conta que estava vendo demais. Só fiz deitar a cabeça na pedra e me ergui novamente, passando a mão pelos olhos, tentando enxergar melhor. Duas luzinhas agora, contei, e mais pra cá da margem do outro lado do rio, já dentro das águas, já seguindo em nossa direção. Levantei devagarzinho e fui me arrastando até atrás de uma pedra já descambando para a descida do rio. Estava tudo escuro demais, com lua escondida e apenas um pássaro agourento piando seus sinistros sinais. Mas não consegui avistar mais nada.
Não consegui avistar mais nada porque a volante alagoana já havia desembarcado, já estava subindo as barrancas pelos lados laterais da gruta e cercando tudo. Se ficaram alguns homens num ponto de desembarque mais próximo onde a gente estava, também não vi nem sinal. Com as embarcações escondidas pela noite, bastava que a polícia tomasse suas posições e esperasse a madrugada abrir, o tempo clarear mais, os cangaceiros aparecerem, para começarem a atirar.
Mas ainda abaixado por trás da pedra, não demorou muito e percebi algo que não pude acreditar. Vi vultos subindo esgueirados, sombras se escondendo por trás das moitas e então não tive dúvida que o bando já estava cercado. Venerando sempre a figura de Lampião e sua bem amada, só pensei neles quando confirmei tanto aperreio ao redor. De onde estava sai me arrastando feito lagartixa, me lanhando todo de espinho e pedra, procurando um jeito de chegar até a gruta e avisar aos dois. Nem pensei em gritar, em fazer barulho, em alertar os amigos. E talvez tivesse sido o meu erro, agora confesso.
Estirado no chão e me arrastando, quando já estava perto de chegar onde eles estavam, assustado levantei a cabeça e vi Maria Bonita passando adiante, com um vasilhame na mão, em direção ao rio. Falei baixinho Maria, Maria, mas ela não ouviu e seguiu em frente. Foi nesse momento que gritei, porém o grito não foi ouvido porque a saraivada de balas urrou mais alto.
No atropelo que sucedeu, Lampião quase passa por cima de mim em direção ao corpo de sua amada morta. E outros tiros, estrondosos disparos, gritos, alucinações, um mundo se transformando em terror e sangue. Cangaceiros retrucavam, atiravam para todos os lados, procuravam se proteger, eram atingidos pelas balas cortantes, caíam feridos de morte. Lampião jazia com a arma na mão, a mesma mão que se estendia por cima do corpo de sua Maria.
Não sei como sobrevivi para relatar isso agora. Depois soube que além do casal, mais nove cangaceiros morreram ali no Angico, naquela gruta que enterrava de vez o verdadeiro cangaço. Sorte minha e de muitos outros por ter conseguido voar no bico do gavião e sair daquele lugar. Cortando no peito tudo que havia pela frente, deixando no corpo as marcas da desesperada fuga, ainda assim muitos conseguiram sobreviver. Mas a vida não tinha sentido. Somente viver sob as ordens do capitão fazia sentido.
Na fuga não sei onde fui parar. Até hoje, tantos anos depois nem sei bem onde estou. Também ninguém deve saber tudo soube o meu passando. Só lembro de uma coisa e disso não esqueço não, que é o meu nome no bando de Lampião. O meu verdadeiro nome já esqueci, mas Tiziu não esqueço não.

Autor: Rangel Alves da Costa - Aracaju/SE
Poeta e cronista

Publicação autorizada através de e-mail de 30/06/2012

Nenhum comentário: