O Feiticeiro chegou às 22:17 e na sua
chegada, dentro da casa, as vozes aumentaram angustiadamente. Houve o início de
uma discussão na língua deles, uma discussão que foi se misturando ao choro de
luto dentro da casa do velório, que ficava bem ao lado da nossa casa. Eles
levantaram as vozes e soubemos que estavam nervosos com a presença do
Feiticeiro. A discussão alongou-se por algum tempo até que alguém gritou na
língua: "Vá embora"! Imediatamente, a casa fez silêncio.
No dia seguinte, entretanto, ele ainda
estava lá. Percebi o olhar de soslaio e assustado de um indígena que escondido
mirava o Feiticeiro.
-É ele o Feiticeiro, não? Perguntei ao
indígena.
-Ele não é bom...
-Eu sei, já me falaram sobre ele. Os
índios dizem que ele anda sobre as águas...
-Ele matou meu avô! Disse-me, abaixando
os olhos. Meu avô disse ao meu pai antes de morrer que foi esse Feiticeiro quem
o envenenou...
-Ontem eu ouvi eles gritando. Você sabe
o que foi?
-O Feiticeiro está com raiva, dizendo
que já pagaram até $4.000, 00 reais lá na outra aldeia para quem conseguisse
matá-lo... As pessoas aqui estão dizendo que foi ele quem matou com feitiço a
criança que enterramos ontem.
-Mas ela não foi morta pelo espírito da
onça?
-Mas quem mandou o espírito foram três
feiticeiros. Os pajés ouviram os espíritos falarem. Os pajés têm medo dos
feiticeiros, medo de vingança, então eles não dizem os nomes dos feiticeiros
para não acabarem morrendo também.
Naquele momento, vi 4 rapazes saírem de
dentro da Casa dos Homens com espingardas nas mãos. A criança estava enterrada
logo ali na frente dessa Casa.
-O que eles estão fazendo?
-A criança foi morta por um feiticeiro,
então o feiticeiro irá aparecer no meio da noite em cima do túmulo da criança
para roubar o espírito dela para si, assim os jovens passarão algumas noites
escondidos, fazendo tocaia. Se o feiticeiro aparecer, eles o matarão.
De todo esse ritual do enterro, todos
os participantes serão pagos pela família da criança. O pai da criança pagará
com colares, comida e outras coisas aos que cavaram o buraco, pagará ao índio
que lavou a criança, pagará ao que a pintou, aos que irão pescar para a
comunidade, etc. Tudo pago. Durante um ano, a família também deverá alimentar
com peixes, bijous e pequis a aldeia, sempre que esta for requisitada para
alguma das festas relacionadas com o velório da criança. Assim, morrer aqui é
tão caro para a família do falecido quanto é em nossa cultura.
Alguns índios seguem o pajé em fila,
indo do túmulo para a casa e da casa para o túmulo. O pajé segura nas mãos
galhos de uma planta especial para aquele ritual. "É para mandar o
espírito da criança embora daqui da aldeia", explicou-me o pajé. "Ela
precisa ir embora agora. Então estamos pedindo que ela vá de vez, do contrário,
ela poderá ficar querendo se despedir aos pouquinhos e aparecer nas nossas
casas. Se ela não for embora, quem encontrar com ela será sinal de que alguma
coisa muito ruim vai acontecer com essa pessoa".
Enfim, queimam as roupas e alguns
outros pertences da criança no centro da aldeia. Os jovens pegarão madeiras e
com elas a aldeia preparará uma espécie de cercado para o túmulo da criança
(veja a foto). O pai raspa o cabelo totalmente. Ele só voltará a cortá-lo no
próximo ano na Grande Festa.
Todas as festas da aldeia irão girar em
torno desse velório até o seu encerramento daqui um ano. Assim, tudo o que
escrevi é apenas o início de um longo e revelador rito, no qual, segundo alguns
antropólogos cristãos, talvez possa existir uma semente plantada por Deus sobre
uma possível crença deles na ressurreição. E realmente há a crença na
ressurreição, mas esta é uma história que contarei depois.
***
"Foi aqui que o neto dela morreu,
Professor. Acharam o corpo do menino ali, já no meio do rio", explicou-me
o barqueiro... Quase me esquecera da tristeza fúnebre daqueles últimos dias,
mas, ao chegarmos às margens do Posto Indígena (última parada antes de sairmos
da Região dos Povos), aquela senhora indígena começou o seu doloroso lamento
sob a forma de um canto repetitivo, um transe soturno. Aquela ladainha me
trouxe à mente tudo o que passamos na aldeia dessa vez, mas que agora estávamos
deixando para trás. Eu e minha família voltávamos à cidade, entretanto o povo
permaneceria ali com toda a sua dor... e medo.
Prof. Wanderley
Dantas
Leia as outras 3 partes desta história:
1)
http://www.gandavos.blogspot.com.br/2012/09/o-fim-dias-indios-xii-morte-visita.html
2) http://www.gandavos.blogspot.com.br/2012/09/a-duvida-era-se-deixariamos-nossas.html
3)
http://www.gandavos.blogspot.com.br/2012/09/professor-voce-viu-por-que-crianca.html
Um comentário:
Professor, meu esposoq uer saber se existe o livro dessa SAGA?
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