Autora: Anajara Lopes
Todos os dias pego o ônibus para o trabalho nesta rua. Muito movimentada, poluída, gente que não acaba mais. Sento no banco a espera que geralmente é interminável. Há momentos em que quinze minutos se tornam tempo demais. Principalmente o de esperar. Esperar é sempre uma angústia, um sentimento noturno de incompreensão com o mundo, com as pessoas. Porém há algo interessante nisso sim porque nesses poucos minutos podem conter horas também intermináveis.
O que me chama atenção,
além das pessoas que passam sem parar, é uma placa. Sempre leio a mesma placa
como se procurando uma novidade, uma palavra nova nos dizeres velhos, sujos
pela poluição e desgaste do tempo. Parecia que aquela placa estava lá há mais
de duzentos anos, com os seguintes dizeres, somente:
PERDEU ALGUMA COISA?
ENTRE! CELULAR: 91996644.
A casa sempre fechada.
Como se fechada para o mundo. Antiga, com janelas e portas de madeira talhada,
com eira e beira. Cores de azul desmaiado e amarelo claro, situada bem na
esquina e do outro lado uma farmácia e um supermercado.
Entravam homens
engravatados, mulheres chiques e elegantes, de óculos escuros ou não. Jovens,
idosos e até crianças de colo. Estudantes com seus uniformes branco-azuis. Não
dava para ver a senhora que atendia a campainha. Aquilo tudo era uma incógnita,
não sei se para todos, pelo menos para mim era. Por mais que eu tentasse
entender pela leitura do texto não conseguia decifrar aquele enigma. Só tinha
uma saída: ir até lá, tocar a campainha e pagar para ver, ou então, ligar para
aquele número do anúncio.
Hesitei por muitos
dias. Cheguei a perguntar para uma senhora que sempre sentava ao meu lado do
banco do que se tratava aquela casa e aquela placa. A mulher não me deu
confiança, aliás respondeu com monossílabos que “não”, não sabia do que se
tratava. Achava até que não morava ninguém ali...
Tive coragem digitei
atentamente o número do celular e para minha surpresa ouvi uma voz de
secretária eletrônica que dizia: “se você concorda com o dia e hora (segunda-feira,
às sete horas) digite 1, se quer escolher outro dia digite 2, se quer escolher
outro horário digite 3, se quer falar com um de nossos atendentes digite 4. Não
responda nada, apenas escolha o número de seu interesse, você está falando com
uma máquina, portanto não obterá nenhum êxito na tentativa de conversar”, se
você concorda com o dia e hora (segunda-feira, às sete horas) digite 1, se quer
escolher outro dia digite 2...
Ouvi muitas vezes
aquela gravação até resolver desligar. Achei, a princípio, que não passava de
uma brincadeira. Bom, fiquei pensando naquilo por muitos dias e não tive
coragem de comparecer àquele dia e horário marcados. Continuei por um tempo
observando aquela casa estranha e aquelas pessoas entrando e saindo
discretamente. Pude perceber nos rostos das pessoas um ar de satisfação, como
se entrassem carregando um peso e saíssem sem ele, um rosto ameno, sereno, com
um pequeno sorriso estampado. Essas feições me deixaram mais intrigada ainda.
Um certo dia saí de
casa meio chateada com alguns problemas familiares e me sentei no cativo banco
de espera do ônibus para o trabalho com um ar angustiado esperando pelo momento
de assumir o meu posto de telefonista na empresa em que eu trabalha há mais de
12 anos. Todos os dias fazia as mesmas coisas. Chegava, abria a gaveta e
retirava os malotes para serem entregues ao Correio Central; preparava a mesa
telefônica para então ficar durante 8 horas por dia, sem direito a sair para
tomar um cafezinho, a não ser que alguém ficasse no meu lugar, que era um pouco
difícil, às vezes, pois cada um cumpria a sua rotina sem se preocupar com os
outros.
Foi justamente nesse
dia que resolvi pegar de novo o telefone e ligar, dessa vez ouvi até o final da
primeira etapa da gravação (a que marcava dia e hora) e então, criei coragem e
compareci na primeira hora do dia seguinte. Bati na porta, suavemente, até com
um pouco de receio. A porta se abriu e uma voz disse: entre e feche a porta!
Fiquei com medo. Mas, naquele momento não dava mais para recuar. Obedeci,
entrei e fechei a porta...
Uma mulher de turbante
azul encaminhou-me para dentro da casa. Olhava para as paredes vermelhas como
se tivesse entrando em um útero. Dividia-me entre olhar para o turbante azul
(da cor do céu) e as paredes almofadadas de vermelho (sangue). Havia também um
tapete que conduzia a um outro cômodo da casa. Essa era a surpresa! Deparei-me
com um telão enorme, e de repente eu já me encontrava dentro dele. O final do
tapete dava na entrada dessa tela. Era como se a partir daquele momento eu
fizesse parte daquele quadro. Eu não me sentia mal. Ao contrário, estava me
sentindo muito bem. Um certo ar de aconchego. Parecia estar cercada de pessoas
das quais gostasse muito. Era só uma impressão, pois, olhava para os lados e
não via ninguém, nem a mulher de turbante azul. Ela havia desaparecido de perto
de mim.
A partir daquele
momento a cada passo mudava o cenário em que estava inserida, como num quadro
que ia se renovando no meu caminhar não sei para onde.
No primeiro passo,
olhei para dentro de mim e só conseguia perceber um coração, como seu eu fosse
composta somente por sentimentos. Estava num CTI comum de hospital. Olhei e vi
uma criança respirando por aparelhos depois de uma cirurgia no crânio. Uma cena
de horror! Parecia um quadro de Salvador Dali. Mas, ao mesmo tempo uma sensação
agradável, acho que de esperança. Havia a mão de Deus depositada em sua cabeça.
Eu via essa mão de Deus abençoando aquele garoto. Ela fazia parte de mim
enquanto a senhora de turbante azul esperava invisível pela criança, do lado de
fora do hospital.
No segundo passo, uma
angústia terrível, pois tentava a todo custo que uma pessoa falasse o que
estava sentindo. Um menino gritava muito e não dizia o que havia. Levantei a
sua cabeça e vi que ele não soltava uma lágrima sequer, apesar dos gritos
poderem ser ouvidos longe. Eu perguntava, perguntava, e nada de resposta. Havia
em mim um sentimento de impotência. Eu não sabia quem era aquele garoto e
porque estava ali no meu caminho. Olhei para o lado e vi uma casa cheia de
doces. Levantei o menino pelo braço e conduzi-o àquela casa e então ele aceitou
doces e biscoitos. Calou-se. Mas não disse palavra. Quando olhei nos seus olhos
azuis vi ao fundo um céu, um mar e um coração que batia num peito do tamanho da
tela. Acho que esse menino era um anjo, ele desapareceu quando dei o terceiro
passo.
Eu estava agora, com
uma forte falta de ar . O ar não adentrava ao peito, apesar de abrigar pulmões
sadios. O ar chegava na garganta e voltava. A sensação era de morte. As pernas
foram ficando descontroladas e os lábios roxos. Até que senti uma agulhada no
braço. Passados uns quinze minutos já respirava um pouco melhor.
No quarto passo
continuava sem ar. No quinto passo também. E assim foi sucessivamente até
achegar ao décimo passo. As crises de falta de ar foram muitas durante a vida
toda.
No décimo passo deu-se
num rio de águas límpidas, uma fresta de luz e um céu azul claro. Ao canto uma
lua partida e uma estrela ao lado. Havia água, muita água. Pisei e continuei
caminhando por algum tempo, como se tivessem sido por durante dias, meses,
anos... até chegar a uma porta. Abri essa porta; saí e a fechei normalmente.
Percebi que estava na rua lateral à casa perto do ponto do ônibus. Tropecei.
Quando olhei para o chão estava lá a minha carteira de identidade. Eu não sabia
que havia perdido a minha identidade.
Descobri que eu era a
mulher do turbante azul, porque me vi dentro dos olhos do menino que comia
doces, assim que levantei o seu rosto eu estava lá. Eu sempre estive lá.
Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG
Publicação autorizada pela autora
Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG
Publicação autorizada pela autora
4 comentários:
Seja bem vinda ao blog Anajara Lopes
Que bom vê-la por aqui, Anajara, estreando com um belíssimo texto e integrando o nosso time, para abrilhantar ainda mais o blog de Carlos Lopes, espaço que nos deixa tão confortáveis e onde nos deliciamos com leituras espetaculares. Seja bem vinda, minha amiga.
Um abraço,
Celêdian
Obrigada pela gentileza do seu convite! Abraços. Anajara
Obrigada, Celêdian! Um abraço. Anajara.
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