quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Texto: 53 (do concurso) - Norte, o cão boiadeiro

Corria o ano de 1955. José, o meu irmão mais velho entre os dez que éramos, certa feita, montou seu cavalo altivo, malhado de três cores e partiu mundo afora. Nos seus 18 anos, poucas vezes, saíra porteira afora da fazenda de meu pai. Naquele dia, com mais oito companheiros, rumou de Bom Despacho para os sertões inóspitos de São Gonçalo do Abaeté. Esse município, então desconhecido e inexplorado, ficava muito além do São Francisco e de outros rios das Minas Gerais. Vizinhava com Patos de Minas. Missão: levar trezentas reses que meu pai vendera para um amigo dele, que acabara de comprar muitas terras por lá.
Aquele foi o batismo de fogo do primogênito de Domingos Leite e Dona Neném. Seu Tiro de Guerra. Seu passaporte para a maioridade. Ele atravessou serras e cursos d’água. Cerrados e matas. Estradas e povoados. Dormia ao relento ou em paióis de milho das fazendas, onde conseguiam licença para pousar. Aí se recuperavam da longa e cansativa viagem. Arrumavam pasto e descanso para os bois e os cavalos.
Dia seguinte, quando o rei dos terreiros contava pra  acordar o sol e fazê-lo levantar-se, a comitiva de boiadeiros  estava de pé. O cozinheiro já partira na frente, com suas panelas e mantimentos. Ia esperá-los numa parada qualquer, lá pelo meio dia. O almoço já pronto pra ser servido.
Nos meus 10 anos de idade, achei a viagem do Zé muito longa. Ela durou meses. Ouvia minha mãe dizer chorosa que estava com muita saudade dele. Eu, embora não o dissesse, também estava.
Uma tardezinha, quando o sol se avermelhou, no horizonte, com a friagem de junho, ele chegou.
Meu jovem irmão apeou de seu belo cavalo pampa, suado e emagrecido pelo rigor da viagem. Puxou a guaiaca cheia de dinheiro da paga dos bois e entregou-a a meu pai. Naqueles tempos, banco era coisa rara e ladrões, também. Não havia perigo. Nem existia outro meio de transportar dinheiro que não aquele pelo qual meu irmão trouxera alguns contos de réis lá do outro lado do mundo, por caminhos ermos dos sertões mineiros. Hoje, contudo, mais de 60 anos depois desse acontecido, o que ficou guardado em minha memória com mais nitidez é a lembrança do Norte.
Norte, um cachorro que o Zé ganhou de um boiadeiro de outra comitiva que pousara com ele e seus companheiros, numa noite escura, em uma velha tapera, na volta do sertão.
Ele não possuía nada de especial. Tamanho de um policial comum. Mas de pelo curto e branco, com grandes manchas vermelho-claras espalhadas por todo o corpo. Dócil, porém na lida com o gado, um gigante fenomenal. Nunca se vira por aqui, e nem em lugar nenhum, alguém jamais viu fazer-se o que o Norte era capaz de fazer com cavalos e reses.
O boi estava bravo e você queria vê-lo no chão, era só mandar. Estivesse o animal parado ou em desabalada carreira, o Norte entrava sob seu ventre. Enfiava-se entre suas patas dianteiras. Puxava-os pelo focinho. Aí era fatal: aplicava-lhe um balão. Como num golpe de judô e jogava-o de costas. As quatro patas viradas inapelavelmente pra cima. Invariavelmente os bichos se levantavam mansos e cordiais. Novilhas ariscas, vacas pegadeiras, rês desgarrada, garrotes ou touros descomunais e nervosos se tornavam mansos depois da primeira pega do Norte.
Para nós, meninos, o Norte chegou como um anjo que caiu do céu. Nas lidas das roças, sobravam pra gente os serviços menores: dar milho às galinhas, tratar dos porcos, guiar boi, apartar bezerros das vacas leiteiras. A gente achava mais difícil, contudo, a missão inglória de buscar cavalos no pasto.
Bastava haver entre eles um animal de mau caráter e velhaco e a tropa toda se punha a segui-lo em disparada para longe da porteira do curral. Por coivaras espinhentas, por ladeiras e subidas íngremes, por alagados e atoleiros, o menino os perseguia. Empurrava-os rumo à sede da fazenda. Acontecia de, no momento final, próximos de cruzarem a porteira, eles soltarem longos relinchos e livres e soberbos correrem pasto afora. Parecia afastarem-se conscientemente dos cabrestos, dos freios, das selas e dos serviços pesados que sabiam estarem à espera deles. O menino cansado, ofegante e irritado tinha de começar tudo de novo.
Graças a Deus, apareceu o Norte. A gente já saía para a invernada, em sua companhia. Se os malandros iniciassem suas carreiras fugindo de nós, açulávamos o bravo cão contra eles. Norte entrava intrépido no meio da tropa em disparada e heroicamente derrubava um, dois, três cavalos. Depois disso, saía milagrosamente ileso do meio das patas perigosas do bando de equinos. Um espetáculo magnífico e emocionante. Dele não me esqueço jamais. E até me arrepio, só de lembrar as memoráveis façanhas desse cão.
Mas tudo que existe se acaba, num dia cinzento de agosto, picado por uma cascavel, o Norte morreu.
Hoje, ao trazer à memória a sua figura, não houve como recordar-me também de Suassuna, no Auto da Compadecida:
“Ele cumpriu sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável, a marca de nosso estranho destino sobre a terra, que iguala a todos num só rebanho de condenados. Porque tudo que é vivo morre.”
Mas Norte sobreviveu por muito tempo ainda. Nos pastos da fazenda, o grito de seu nome fazia os cavalos ariscos dirigirem-se obedientes para o curral. Era a sua alma ajudando-nos a campear, embora ele já estivesse no além, no paraíso preparado pelo deus dos cães para os cachorros valentes.                  

5 comentários:

Anônimo disse...

A descrição das paisagens por onde passam os boiadeiros saltam aos olhos de quem lê. E a historia de Norte é bem realista. Gostei imensamente.
Conceição Gomes

Anônimo disse...

A descrição das paisagens por onde passam os boiadeiros saltam aos olhos de quem lê. E a historia de Norte é bem realista. Gostei imensamente.
Conceição Gomes

Anônimo disse...

(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação: se há erros graves desta natureza não percebi durante a leitura, só uma palavra que parece ter sido digitada com erro: ao invés de ‘o rei dos terreiros contava’ devia ser ‘cantava’, não? Uma história muito agradável de se ler, contada de maneira natural e envolvente, enriquecida pela citação de trecho de Literatura da melhor qualidade (Salve Suassuna!), o que valoriza sobremaneira o texto e a experiência de leitura. Diria que se adequa bastante à proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Lembrando que estou apenas comentando os textos sem compromisso. Avaliação pessoal: ótimo! Parabéns à autora ou ao autor e muito boa sorte! (Torquato Moreno)

Anônimo disse...

Leitura envolvente, muito agradável. Fui longe, visitando tempos da minha infância ao deparar aqui com expressões muito próprias do meio rural. Parabéns ao autor ou autora. Marina Alves.

Alberto Vasconcelos disse...

Texto muito bom, perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. As pequenas correções necessárias não chegam a prejudicar o todo. Parabéns a quem o produziu.