quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Bairro da Boa Vista, no Recife, uma viagem às memórias do meu coração

Autor: Augusto Sampaio Angelim

Ruas, avenidas, logradouros, hotéis, praças, igrejas, prédios públicos, bares, restaurantes, escolas, padarias, um sem número de lembranças do bairro da Boa Vista vão chegando à memória. Vindo eu de um sertão cuja se distância para o Recife era medida por uma noite toda dentro de um ônibus, não havia como não gostar dos encantos de um bairro que, em meados dos anos setenta conseguia combinar, ainda, a nostalgia e fidalguia de décadas mais tranqüilas e a modernidade. Em certas ruas, algumas famílias, nas tardes domingueiras, conversavam nas calçadas. Ao invés da verticalização de agora, predominavam as casas, muitos casarões e alguns prédios modestos. Neste mesmo tempo, a sua principal artéria, a Avenida Conde da Boa Vista e a Rua da Imperatriz já eram agitados centros comerciais e bancários.
Caminhar pelas ruas do bairro, inclusive tarde da noite, permitia absorver o ambiente cultural que agitava o Recife. Na Rua do Hospício pontificava o DCE (Diretório Central dos Estudantes) que saiam às ruas para protestar contra a ditadura e o governo. Logo me tornei um deles e lembro um dia, no ano de 78, quando houve uma movimentação grande e a polícia reagiu com violência, disparando tiros para o alto e jogando bombas de gás lacrimogênio. Eu e outros entramos, à força, no antigo Cine Veneza, para escapar à fúria dos policiais. Já na Faculdade, recebemos uma noite, os Senadores Paulo Brossard, Pedro Simon e Marcos Freire, com o prédio cercado pela tropa de choque e muitos cachorros. Uma confusão dos diabos, mesmo assim eles conseguiram entrar na faculdade e falaram aos estudantes. Eram tempos difíceis e a universidade estava repleta de policiais infiltrados, mesmo assim, fizemos a primeira greve da Faculdade de Direito do Recife. Na votação da emenda constitucional do deputado Dante de Oliveira, que propunha as eleições diretas, apesar da direção da faculdade haver ordenado o seu fechamento, conseguimos com que ela ficasse aberta e olhos na televisão e ouvidos nos rádios, saímos frustrados com a rejeição da proposta.

A primeira vez que tomei uma cerveja, foi no Mustang, que era um bar freqüentado por jovens estudantes, políticos menos conhecidos e por algumas mulheres de vida difícil que trabalhavam na Boate Aritana, situada no mesmo edifício que abrigava o Mustang. No Teatro do Parque assisti a inúmeros espetáculos musicais, e, num deles, tive o prazer inesquecível de conversar com Cartola. Isto mesmo, Cartola, minha Senhora, este ícone da música popular brasileira. Morando por muito tempo na Praça Maciel Pinheiro, bem pertinho do Teatro, chegava muito antes e saia muito tempo depois dos shows, daí o encontro com o velho Cartola.
Caminhar por suas ruas de nomes poéticos como da Saudade, da Alegria, do Jasmim, da Aurora, da União e da Soledade era como compor poemas, se é que estou sendo claro. Outras ruas, sempre me deixavam desconfiados, pelo traçado e até pelo nome, como Bulhões Marques. Nenhuma, entretanto, me deixava mais precavido que a Rua da Conceição, com suas casas mortuárias (funerárias), não que tivesse medo de defuntos e almas, mas é que, sinceramente, não é bom se meter com gente de outro mundo. A Rua Velha, que era velha mesmo, era um dos meus lugares prediletos, até mesmo porque lá morei alguns anos, assim como na Praça Maciel Pinheiro. Sim, morei também na Rua Visconde de Goiana, na Rua do Jasmim, na Rua Gervásio Pires e na confluência das Ruas Barão de São Borja e da Soledade. Porque tantos lugares? Minha cara amiga, eu era estudante, vindo do interior e, por várias razões que agora não convém explicar, era nômade. Na Rua Velha e noutras ruas da Boa Vista, morava tanta moça bonita que dava gosto olhar para suas casas. A Avenida Conde da Boa Vista, hoje símbolo da decadência urbana do centro recifense, era um vigoroso corredor comercial e bancário. Vi o antigo prédio do Colégio Alfa ser derrubado para dar lugar à loja da Mesbla, até então o prédio comercial mais moderno do Recife.
No Cine Veneza, com suas paredes internas revestidas de um tecido aveludado de cor vinho, podia-se paquerar com elegância, na sua sala de espera. Era chique, como se dizia à época. No Veneza vi filmes como Aeroporto, Apocalypse Now e tantos outros. Na tarde de domingo que assisti Hair, deixei o cinema inebriado com os valores explicitados na película e com o coração ressoando a trilha sonora do filme. O som do Veneza era o máximo. Na Avenida Suassuna funcionavam dois cinemas, o Astor e o Ritz, que passavam filmes mais cults e neles assisti “A mulher do tenente francês” e “O iluminado”, entre outros. Na Barão de São Borja, ainda conheci o prédio do Cine Polytheama, inclusive com sua inscrição na fachada e a bilheteria frontal. Na Rua do Paissandu, ou Praça Chora Menino, estava o Cine Boa Vista, local em que vi, pela primeira vez, “Tubarão”. Pense num medo, parecia que as cadeiras tremiam. O Cinema Moderno, com sua enorme sala de espera e sua porta principal envidraçada com detalhes de metal dourado, deixava transparecer uma atmosfera de brilho e antiguidade. Não se podia entrar ali de bermudas e muito menos de sandália do tipo havaiana. 
Outro local que não esqueço é o Cais José Mariano, aonde ficavam as velhas fábricas da Cilpe e do Açúcar Estrela (Amorim Primo), cuja estrela vermelha ficava piscando a noite inteira, cujo trânsito, já era complicado naqueles tempos, por conta dos caminhões de cargas de açúcar e madeira. No local havia várias madeireiras. O Leite Cilpe, do governo do Estado, era distribuído em saquinhos nas padarias, bares e mercearias. Houve um tempo, que todos os dias, bem cedo, eu descia do prédio na Maciel Pinheiro para ir pegar o leite na “Leiteria” que ficava na Rua do Hospício, ainda me lembro da sensação táctil causada pelo leite gelado.
No início dos anos oitenta entrei na Faculdade de Direito e passei a conhecer parte da intelectualidade recifense como Ângelo Monteiro, poeta e filosofo com quem travei diálogos no meio da Rua Sete de Setembro, na calçada de um bar que ficava embaixo do Edifício Ipiranga (outro lugar que morei, por uns seis meses). Diálogos, evidentemente, esquecidos por Ângelo, decorrentes da facilidade com que o álcool permitia ao brilhante professor conversar com um estudante afoito. Um dos temas, me lembro, foi o filme “Je vous Salue, Marie”, de Godard, que causou muita polêmica à época. Como pode a senhora imaginar, a conversa foi sobre religião, dogmas, tabus e sexo, lógico. Décadas depois é que soube que Ângelo Monteiro é natural da cidade alagoana de Penedo, com quem tenho uma ligação afetivo-cultural muito grande. Na Rua Sete de Setembro, estava situada a Livro Sete, de Tarcisio Pereira (de boné, calvanhaque, calça jeans e sempre sorrindo) uma portentosa livraria para àqueles tempos e local de encontro de intelectuais e estudantes, com palestras, recitais, e, que, aos sábados, servia uma boa “batidinha” de cachaça. No segundo ano de faculdade, fiz um estágio no escritório de advocacia, por indicação do ex-senador Mansueto de Lavor, e então tocado por seu ex-sócio, Dr. João Batista de Albuquerque. O escritório ficava no Edifício Pirapama, em plena Avenida Conde da Boa Vista. O Pirapama já era um prédio cheio de problemas e abrigava lojas comerciais no térreo, salões de beleza, escritório de representantes comerciais, alguns consultórios, escritórios de advocacia, casas de massagem e até residências.
Entre 1984 e 1985 trabalhei na agência do Banorte (Banco Nacional do Norte), da Praça Maciel Pinheiro. Um amigo na praça e, então, o mais moderno banco brasileiro mas que, infelizmente, no final da década, terminou sendo incorporado por outra instituição financeira, terminando assim a história de um banco genuinamente pernambucano.
Vi a Rua da Imperatriz se transformar em rua de pedestres, uma mudança urbana radical. Antes, boa parte dos ônibus que saia do centro da cidade para a Várzea, Caxangá e Brasilit, transitavam ruidosamente pela aquela estreita via, causando grandes transtornos.
Estudei no Colégio Oliveira Lima, situado na Rua Barão de São Borja e no Colégio Radier, que ficava próximo à Praça Osvaldo Cruz, onde está o Teatro Valdemar de Oliveira, lugar que vi algumas peças conhecidas. Em frente ao Radier, ficava um posto de gasolina, com um bar denominado “Apple”, que era freqüentado pelos que tinham carro e dinheiro, o que não era o meu caso. Na praça Osvaldo Cruz, havia o Restaurante da Ilha de Kós, da Sociedade de Medicina e seu delicioso bife à moda diplomata. Saindo da Praça da Fusam, como é também conhecido este logradouro, chega-se à Rua do Padre Inglês, na qual havia um hospital psiquiátrico e um centro teológico. Um primo meu que era também estudante, ficou uns dias internado no hospital da Padre Inglês e eu fui visitá-lo algumas vezes. Saindo da Rua do Padre Inglês e ultrapassando-se a Avenida Conde da Boa Vista, chega-se à Rua Dom Bosco que me lembra o Consulado Americano e o conjunto de edifícios conhecidos como “os condenados”.
Passei boa parte de meus dias, antes de ingressar na faculdade, estudando na Biblioteca Pública Estadual, situada ao lado do Parque Treze de Maio, na Rua João Lira. E, entre um livro e outro, tive um ligeiro namoro com uma bibliotecária. Já na faculdade, os estudos eram feitos na sua velha biblioteca ou nas varandas, nos dias de calor ou em que o estudo era coletivo. É deste tempo a freqüência assídua e irresponsável de um bar, cujo dono, chamado, chamado “Maia”, permitia a mim e a outros colegas, companheiros, camaradas, dormirem dentro do estabelecimento, quando a noite já era alta e os últimos ônibus já não transitavam mais. Havia, também, o Bar Robertão Setenta, que de bom tinha apenas a freguesia de um ou outro estudante, cerveja gelada e, principalmente de um poeta que morreu cedo, Ericson. O Robertão 70 ficava na Rua Princesa Isabel, já perto da Rua da Aurora. Sim, minha senhora, ia esquecendo de dizer que, morei também, se bem que por apenas um ou dois meses, num apartamento na Rua Mário Melo, pertinho também da Rua da Aurora. Tempos depois, minha mãe morou no Edifício Alfredo Bandeira, na Rua da Aurora e de da altura do 18º andar se avistava muito do Recife e Olinda. Dividi o apartamento da Rua da Aurora com um velho jornalista cujo nome não me lembro mais, porém me marcou pelo seu jeito enfadonho e por ele haver tomado emprestado um livro e não ter me devolvido. O livro em questão era “Brasil: de Getúlio a Castelo”, do brazilianista Thomas Skidmore, ou melhor, é, ainda. Afinal não me esqueço que não foi devolvido e, muito menos ainda, que foi comprado “no carnet” em várias prestações, na Livro 7.
Fazia muitos anos que não circulava pelas ruas da Boa Vista, mas outro dia, num domingo, matei a saudade e, sinceramente, minha senhora, não tive como conter a tristeza, nessa viagem às memórias do meu coração, recordando pessoas, casas, prédios e odores.

Autor: Augusto Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE


Publicação autorizada pelo autor

6 comentários:

Carlos A. Lopes disse...

Amigo Augusto, um relato e tanto, uma verdadeira aula de sociologia, o amigo colocou em letras o que milhares de estudantes viveram enquanto estudantes, cada a um a sua maneira. O bairro da Boa Vista era o local preferido de quem vinha do interior para se aventurar na capital, pois estava perto de tudo. É bem capaz da gente haver se cruzado em algum lugar pois frequentávamos os mesmos lugares. Eu era viciado em livros e estava sempre na Livro 7 ou na Síntese, logo ali ao lado, salvo engano, sua proprietária era irmã do Tarcisío. E aí vem o leite Cilpe, Mustang, São Luis, Cine Veneza de onde sai deslumbrado com o filme Hair. Outro dia me rendi a saudade e fui na Padaria Santa Cruz só pra saborear o pão francês com queijo de prato, que outrora escorria pela minha mão. Da Rua velha guardo preciosas lembranças: Foi lá que morava quando ingressei na Católica e pesquisando sobre esse mesmo logradouro encontrei o texto de sua autoria. Daí pra cá o seu brilhante processo criativo ajudou bastante no nosso processo criativo, recentemente fizemos um concurso inspirado em um lugarejo que o amigo descobriu como fonte inesgotável de inspiração: O Feliciano.

Maria Mineira disse...

Um relato primoroso, onde as recordações se apropriam das letras para descrever as cenas, os momentos e fatos que fazem à tona muitas saudades. Parabéns!

Patricia disse...

Hoje as coisas são muito iguais. Gosto dessas lembranças de outras gerações onde a massificação ainda não tomava conta da vida das pessoas.

Augusto Sampaio disse...

Agradeço aos comentários de Carlos, Maria Mineira e de Patrícia. Quando ando hoje pelo bairro da Boa Vista tenha uma enorme saudade do que ele foi.

Celêdian Assis disse...

Olá, Augusto!

Em minha última visita ao Recife, em fevereiro deste ano, eu tive o prazer de conhecer muito desse cenário que você descreveu aqui, através do Carlos Lopes e da Patrícia. Achei fantástico quando ele foi me apresentando os lugares que foram também cenário de muitos textos dele (Rua velha, Praça Chora menino,etc). Há muita História impregnada naquele lugar e então entendo o quanto as suas lembranças devem lhe ser caras, assim como nos mostra no seu maravilhoso texto.
Um abraço, amigo.
Celêdian

http://www.augustonsampaioangelim.recantodasletras.com.br disse...

Minha cara Celêdia, muito obrigado pelo comentário. Estou devagarinho, quase parado, nos escritos, mesmo assim espero concluir um novo conto sobre Feliciano e no qual vou misturar uns traços de Rosa e Murilo Rubião, seus conterrâneos.