Autor: Flávio Cruz
O Jenuíno foi o primeiro. Foi ficando esquecido,
esquecido, até não se lembrar de mais nada. A gente olhava para ele e ele
ficava com aquela cara de interrogação. Não sabia do que a gente estava
falando. Seu sorriso era distante, uma vaga impressão de que sabia do que se
tratava. Quando o Alberto ficou exatamente do mesmo jeito, e ele era o melhor
amigo do Jenuíno, muita gente pensou que era uma coisa que “pegava”. Existe
gente que é ignorante, não entende como funcionam essas coisas de bactérias e
vírus. Eu também não entendo muito, mas pelo menos sei que loucura não é
contagiosa, não dá para pegar. O fato é que o doutor da cidade também descartou
essa possibilidade. Disse que o único jeito de descobrir essas coisas era
fazendo exames. Coisa sofisticada, em laboratório. Ele já estava
providenciando. Essas coisas não podem ser feitas assim, no mais ou menos.
Ciência é coisa séria, não é coisa de opinião, muito menos coisa de comadre
conversando na rua.
De repente, a coisa pegou fogo. Você pode argumentar
o que quiser, mas contra fatos não há argumentos. O doutor Euzébio não
conseguiu mandar ninguém para fazer exame na cidade grande. O motivo foi bem
simples e ao mesmo tempo assustador. Ele também “pegou” a estranha doença.
Coisa de louco, sem querer fazer jogo de palavras com coisa tão séria. Não
clinicava mais, só balbuciava umas palavras e tinha aquele mesmo olhar
perdido dos outros dois. Agora estava claro. Não só aquilo era coisa que
“pegava” como também era coisa do capeta. Imagina só, o próprio doutor. Um
homem formado, que sabia das coisas, que conhecia higiene como nenhum outro,
pegar uma coisa daquelas. Já pensou quanta cultura ali, desperdiçada?
O fato é que os moradores começaram a ficar
com medo. Tinha gente que fervia água, tinha gente que punha álcool em tudo.
Que tolice. Como é que álcool vai impedir uma coisa dessas? Ignorância é uma
coisa triste. É verdade que, às vezes, as coisas são tão complexas que até
mesmo pessoas inteligentes não conseguem entender. Veja o caso do doutor. Nem
ele sabia o que estava acontecendo. A ignorância é também uma coisa relativa.
Até o mais sabido de todos pode ser um ignorante. Ele sabe um monte de coisas
mas não sabe outras que estão muito acima dele. O fato é que para entender o
que estava acontecendo ali, tinha de ser alguém com uma sabedoria muito grande.
Não era qualquer um que podia explicar. Com certeza, não.
A única coisa que se sabia era que aquilo era uma
coisa esquisita. Primeiro, dois amigos. Depois o doutor que estava tentando
descobrir uma solução. Pode ser coincidência, mas parecia que existia alguém
por trás daquilo. Os dias foram passando e os três apareciam de vez em quando
na rua, cumprimentavam as pessoas mas não estavam melhorando. Falavam coisas
sem sentido entre eles e com a gente também. Isso à parte, o resto era normal.
Comiam, bebiam, andavam pela cidade. Devagarinho a gente foi se acostumando com
a ideia. Acho que para isso não acontecer, o ente que estava provocando tudo
isso, resolveu dar uma mostra de poder. Em uma só semana, levou mais cinco. Um
parente do doutor, dois tios de sua mulher, um primo do Jenuíno, outro
aconhecido do Alberto. Tinha lógica e não tinha. Eram parentes ou amigos. Mas
ali na cidade, quase todo mundo acabava sendo parente ou relacionado de alguma
forma. Só podia ser doença ou uma coisa sobrenatural. Uns três jovens, todos de
certa forma ligados aos “atacados” – como agora eram chamados –
resolveram sair da cidade. Nunca se sabe, podia ser mesmo contagioso.
A nossa pequena comunidade era muito isolada do
mundo e a gente tinha quase de tudo que precisava por ali. Talvez tenha sido
esse o motivo pelo qual ninguém decidiu procurar ajuda, ver o que estava
acontecendo. Mas eu tenho cá para mim que o verdadeiro motivo era o medo. Medo
de descobrir o que realmente era. Se fosse uma doença curável, tudo bem A gente
fazia o que tinha de fazer. Mas e se não fosse? De repente era uma coisa do
mal, e a gente ia ficar numa situação comprometedora. Com essas coisas não se
brinca. Do jeito que estava, não estava bom, mas mexer naquilo podia ficar
pior. Ninguém falava as coisas claramente, mas dava para saber o que todo mundo
estava pensando. Como disse, não era nada bom, mas era melhor assim do que
ficar pior.
Eles não atrapalhavam ninguém, a gente foi se
acostumado de novo e cada vez mais, as coisas foram andando. Mas todo mundo
sabia que não ia ficar por aí. Tem coisa que não tem uma lógica visível, mas dá
para saber que é o óbvio. Mais algumas semanas se passaram e mais algumas
pessoas ficaram “atacadas”. Depois de alguns meses eram centenas, as pessoas
nem avisavam mais. A cidade era pequena, tinha pouco mais de mil habitantes e
chegou-se a um ponto onde havia mais “atacados” do que gente normal.Tirando o
caso do doutor que tinha uma função muito complexa, os outros todos continuavam
a cumprir suas funções sem muito problemas. Faziam as coisas mecanicamente,
como autômatos. Entretanto, a gente sabia que eles não estavam pensando, que
seus cérebros não funcionavam.
Éramos agora bem poucos, os “sadios”. E a ”coisa”
parou por um tempo. Achamos até que tudo tinha acabado. Aí outra coisa
esquisita começou a acontecer. Uns pássaros grandes, do tamanho de urubus,
começaram a descer na cidade. Mas não eram pretos, não. Eram de um azul escuro,
muito bonito. Também não eram agressivos. Ficavam por ali, andando ao invés de
voar. Vez ou outra eles voavam um pouco mas voltavam. Havia centenas. Ninguém
podia dizer do que se alimentavam. Ficavam bem à vontade, não pareciam ter medo
da gente. Às vezes pousavam sobre nossos ombros, bem amigáveis. Vá se entender.
Se não fosse o problema que a gente já tinha, ia ser um confusão danada. Mas o
que era aquilo perto do que nós estávamos passando?
Finalmente todos ficaram “atacados”. A gente sabia
que isso ia acabar acontecendo. Eu fui o último. Agora, aqui de cima posso ver
meu corpo, lá embaixo, andando pela cidade, fazendo as coisas que precisam ser
feitas. Assim, sem saber o que está acontecendo. Mas sou eu mesmo que decido
para onde meu corpo vai, o que vai fazer, o que vai comer. Não estou falando de
meu corpo de pássaro. Estou falando do meu corpo de gente. Só não consigo
falar, e estou me esquecendo de quase tudo. Mas agora, pelo menos, as coisas
fazem sentido. Eu sou um belo pássaro azul, consigo controlar meu corpo. Só não
dá para a gente conversar com os outros pássaros, quero dizer, com os outros
habitantes da cidade. Mas a gente se entende. Voa um pouquinho, pousa lá na
rua. A gente se vê por aí. Eu sou um belo pássaro azul. Bonito mesmo. Como disse,
as coisas agora se encaixam. Claro, não têm explicação, a causa nós não
sabemos. Mas quem sabe a causa de alguma coisa? A gente não sabe de nada,
ninguém sabe como tudo começou. Claro, estou falando agora do mundo, do
Universo. Como as coisas apareceram? Quem sabe? Nós não sabemos nada. Pelo
menos, eu sei agora, que eu sou um pássaro azul. Bonito. Quando quero, posso
voltar para o chão. Quando quero, posso voar. Isso é mais do que suficiente.
Para que eu iria querer saber mais? Não precisa. Ser um pássaro, e ainda mais
azul, é para mim, mais do que suficente, pelo menos por enquanto...
Autor: Flávio Cruz - Flórida/EUA
Publicação autorizada pelo autor
Um comentário:
Excelente!
Alice Gomes
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