Ela
o encontrou semimorto debaixo da goiabeira. Penas encharcadas, olhinhos
cerrados, asa quebrada. Pobre Sabiá! Flagrado pelo temporal da noite não pudera
escapar. Condoeu-se do bichinho. Catou-o do chão e o aqueceu no calor das mãos.
Subitamente, num movimento quase imperceptível, viu-o abrir os olhos, e uma
alegria imensa tomou conta dela: ele ainda tinha vida!
Carregou
o animalzinho para a cozinha. Enrolou-o em paninhos quentes e pensou “Hei de
salvá-lo!”. Desde que o mundo é mundo não há melhor remédio que o amor para
curar feridas e outras dores. Foi o que ela fez com “Peninha”, seu mais novo
companheiro. Durante dias tratou-o como quem trata uma joia delicada. Comidinha
pelo bico, água gota a gota na pontinha de colher, unguentos para a asinha
ferida. Aos poucos Peninha ia ficando bom...
Ela
o tinha em vigilância e cuidados, sem cessar. Dedicou-se ao bichinho de corpo e
alma. Também, aos oitenta e tantos não tinha mesmo muito do que se ocupar. Os
filhos morando longe, só vinham de visita breve. A solidão doía por dentro.
Mas, agora tinha Peninha, amigo que a sorte lhe mandara, em noite de chuva... O
passarinho, já mais animado, acompanhava a dona pela casa, sempre aos pulinhos,
pois que a asa ainda amarradinha não lhe permitia maiores movimentos.
Ela
se apegava a cada dia. E já pensava na hora em que Peninha, de asa sarada,
alçasse voo para os infinitos do quintal. Ah, ia ser duro! Tinha se acostumado
aos olhinhos buliçosos sempre a procurar pela sua presença na casa. Como seriam
os dias sem o bichinho dando sentido à sua vida, fazendo da casa um lar de
gente normal? Pensava, mas não queria pensar...
Num
domingo de manhã, ela deu por falta de Peninha ao rabo do fogão, onde ele tinha
por costume se encolher ao calor das últimas brasas. Fora embora! Enfim tinha
tomado o rumo do arvoredo, que para isso ela sempre deixara aberta a janelinha
de pau da cozinha. Não impediria sua vontade de partir. Jamais o obrigaria à
gaiola de suas paredes. O mundo de Peninha era o espaço, os ares perfumados e
sem fim da Natureza. Lá sim, era seu lugar por mais que lhe doesse a falta...
Abriu
a porta e olhou o céu azul. Estava triste. Nem mesmo quando os meninos rumaram
pra São Paulo, sentira aquele buraco por dentro. Também, naquele tempo era mais
nova, não tinha a solidão de agora. Com o dorso da mão limpou uma lágrima que
teimava em lhe escorrer pelo rosto sulcado pelo tempo. De repente... O canto!
Como numa mágica, a melodia a guiou para o ponto exato de onde vinha: o galho
da goiabeira! Era ele!
Tomada
de emoção profunda ela demorou os olhos na avezinha de penas marrons e murmurou
tremulamente “Peninha, meu sabiá!”. Peninha e seu canto mavioso! A primeira vez
que o ouvia! E era como se cantasse para ela, só para ela! Caminhou em sua
direção. A ave não se moveu, não voou... Não fugiu. Ao contrário, soltou no ar
o seu canto ainda mais forte! Era sim para ela, só para ela que Peninha
cantava! Longos e doces momentos de um cântico sonoro e terno! Depois... O
silêncio. Vencido pelo esforço, a avezinha silenciou, apenas tombando a
cabecinha de um lado para outro, como quem olha com esmerado carinho o ser mais
amado... Seriam beijos de gratidão?
E
quando o passarinho alçou vôo e sumiu no meio das folhas, confundindo-se com as
árvores do pomar, ela não mais se entristeceu. Entrou leve e em paz. Sentiu que
ele não a deixaria mais sozinha. E assim foi: pelas manhãs, Peninha sempre
voltava para a serenata matutina que ela já esperava. Com a suavidade de seu
canto, ele lhe adoçava a velhice, enchia de alegria e alento a varandinha da
cozinha onde ela tomava o café matinal.
Pelos
meados de setembro, ela partiu. A vizinha, na falta dos barulhos rotineiros da
casa, estranhou. Rodeou pelos fundos e deu com o corpo caído de borco na
mesinha da varanda, junto ao bule de café e um pratinho de biscoitos. No fim da
tarde, entre réstias de sol e cheiros de primavera, o corpo desceu à terra. No
galho de uma quaresmeira que despetalava seus roxos sobre a cova, cantava um
sabiá. Cantava só, um canto triste como nunca se viu...
3 comentários:
(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação me pareceram relativamente em ordem. Se há erros desta natureza, não detectei durante a breve leitura que fiz. Um relato simples, convincente, recheado de lirismo e muito comovente, e por isso envolve o leitor. O texto parece estar totalmente inserido na proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Avaliação pessoal: entre muito bom e ótimo. Parabéns à autora ou ao autor e boa sorte! (Torquato Moreno)
Conto maravilhoso. Ótimo!
Excelente texto. parabéns a quem o produziu.
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