Corria o ano de 1955. José, o meu irmão mais velho
entre os dez que éramos, certa feita, montou seu cavalo altivo, malhado de três
cores e partiu mundo afora. Nos seus 18 anos, poucas vezes, saíra porteira
afora da fazenda de meu pai. Naquele dia, com mais oito companheiros, rumou de
Bom Despacho para os sertões inóspitos de São Gonçalo do Abaeté. Esse
município, então desconhecido e inexplorado, ficava muito além do São Francisco
e de outros rios das Minas Gerais. Vizinhava com Patos de Minas. Missão: levar
trezentas reses que meu pai vendera para um amigo dele, que acabara de comprar
muitas terras por lá.
Aquele foi o batismo de fogo do primogênito de
Domingos Leite e Dona Neném. Seu Tiro de Guerra. Seu passaporte para a
maioridade. Ele atravessou serras e cursos d’água. Cerrados e matas. Estradas e
povoados. Dormia ao relento ou em paióis de milho das fazendas, onde conseguiam
licença para pousar. Aí se recuperavam da longa e cansativa viagem. Arrumavam
pasto e descanso para os bois e os cavalos.
Dia seguinte, quando o rei dos terreiros contava
pra acordar o sol e fazê-lo levantar-se, a comitiva de boiadeiros estava
de pé. O cozinheiro já partira na frente, com suas panelas e mantimentos. Ia
esperá-los numa parada qualquer, lá pelo meio dia. O almoço já pronto pra ser
servido.
Nos meus 10 anos de idade, achei a viagem do Zé
muito longa. Ela durou meses. Ouvia minha mãe dizer chorosa que estava com
muita saudade dele. Eu, embora não o dissesse, também estava.
Uma tardezinha, quando o sol se avermelhou, no
horizonte, com a friagem de junho, ele chegou.
Meu jovem irmão apeou de seu belo cavalo pampa,
suado e emagrecido pelo rigor da viagem. Puxou a guaiaca cheia de dinheiro da
paga dos bois e entregou-a a meu pai. Naqueles tempos, banco era coisa rara e
ladrões, também. Não havia perigo. Nem existia outro meio de transportar
dinheiro que não aquele pelo qual meu irmão trouxera alguns contos de réis lá
do outro lado do mundo, por caminhos ermos dos sertões mineiros. Hoje,
contudo, mais de 60 anos depois desse acontecido, o que ficou guardado em minha
memória com mais nitidez é a lembrança do Norte.
Norte, um cachorro que o Zé ganhou de um boiadeiro
de outra comitiva que pousara com ele e seus companheiros, numa noite escura,
em uma velha tapera, na volta do sertão.
Ele não possuía nada de especial. Tamanho de um
policial comum. Mas de pelo curto e branco, com grandes manchas vermelho-claras
espalhadas por todo o corpo. Dócil, porém na lida com o gado, um gigante
fenomenal. Nunca se vira por aqui, e nem em lugar nenhum, alguém jamais viu
fazer-se o que o Norte era capaz de fazer com cavalos e reses.
O boi estava bravo e você queria vê-lo no
chão, era só mandar. Estivesse o animal parado ou em desabalada carreira, o
Norte entrava sob seu ventre. Enfiava-se entre suas patas dianteiras. Puxava-os
pelo focinho. Aí era fatal: aplicava-lhe um balão. Como num golpe de judô e
jogava-o de costas. As quatro patas viradas inapelavelmente pra cima.
Invariavelmente os bichos se levantavam mansos e cordiais. Novilhas ariscas,
vacas pegadeiras, rês desgarrada, garrotes ou touros descomunais e nervosos se
tornavam mansos depois da primeira pega do Norte.
Para nós, meninos, o Norte chegou como um anjo que
caiu do céu. Nas lidas das roças, sobravam pra gente os serviços menores: dar
milho às galinhas, tratar dos porcos, guiar boi, apartar bezerros das vacas
leiteiras. A gente achava mais difícil, contudo, a missão inglória de buscar
cavalos no pasto.
Bastava haver entre eles um animal de mau caráter e
velhaco e a tropa toda se punha a segui-lo em disparada para longe da porteira
do curral. Por coivaras espinhentas, por ladeiras e subidas íngremes, por
alagados e atoleiros, o menino os perseguia. Empurrava-os rumo à sede da
fazenda. Acontecia de, no momento final, próximos de cruzarem a porteira, eles
soltarem longos relinchos e livres e soberbos correrem pasto afora. Parecia
afastarem-se conscientemente dos cabrestos, dos freios, das selas e dos
serviços pesados que sabiam estarem à espera deles. O menino cansado, ofegante
e irritado tinha de começar tudo de novo.
Graças a Deus, apareceu o Norte. A gente já saía
para a invernada, em sua companhia. Se os malandros iniciassem suas carreiras
fugindo de nós, açulávamos o bravo cão contra eles. Norte entrava intrépido no
meio da tropa em disparada e heroicamente derrubava um, dois, três cavalos.
Depois disso, saía milagrosamente ileso do meio das patas perigosas do bando de
equinos. Um espetáculo magnífico e emocionante. Dele não me esqueço jamais. E
até me arrepio, só de lembrar as memoráveis façanhas desse cão.
Mas tudo que existe se acaba, num dia cinzento de
agosto, picado por uma cascavel, o Norte morreu.
Hoje, ao trazer à memória a sua figura, não houve
como recordar-me também de Suassuna, no Auto da Compadecida:
“Ele cumpriu sua sentença, encontrou-se com o único
mal irremediável, a marca de nosso estranho destino sobre a terra, que iguala a
todos num só rebanho de condenados. Porque tudo que é vivo morre.”
Mas Norte sobreviveu por muito tempo ainda. Nos
pastos da fazenda, o grito de seu nome fazia os cavalos ariscos dirigirem-se
obedientes para o curral. Era a sua alma ajudando-nos a campear, embora ele já
estivesse no além, no paraíso preparado pelo deus dos cães para os cachorros
valentes.
5 comentários:
A descrição das paisagens por onde passam os boiadeiros saltam aos olhos de quem lê. E a historia de Norte é bem realista. Gostei imensamente.
Conceição Gomes
A descrição das paisagens por onde passam os boiadeiros saltam aos olhos de quem lê. E a historia de Norte é bem realista. Gostei imensamente.
Conceição Gomes
(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação: se há erros graves desta natureza não percebi durante a leitura, só uma palavra que parece ter sido digitada com erro: ao invés de ‘o rei dos terreiros contava’ devia ser ‘cantava’, não? Uma história muito agradável de se ler, contada de maneira natural e envolvente, enriquecida pela citação de trecho de Literatura da melhor qualidade (Salve Suassuna!), o que valoriza sobremaneira o texto e a experiência de leitura. Diria que se adequa bastante à proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Lembrando que estou apenas comentando os textos sem compromisso. Avaliação pessoal: ótimo! Parabéns à autora ou ao autor e muito boa sorte! (Torquato Moreno)
Leitura envolvente, muito agradável. Fui longe, visitando tempos da minha infância ao deparar aqui com expressões muito próprias do meio rural. Parabéns ao autor ou autora. Marina Alves.
Texto muito bom, perfeitamente dentro dos parâmetros do concurso. As pequenas correções necessárias não chegam a prejudicar o todo. Parabéns a quem o produziu.
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