Há uma criança enterrada bem no
centro da minha aldeia. Mas não tem nada a ver com algum caso de infanticídio
indígena. Ela faleceu ano passado e dizem que foi morta por um “bandido”, o que
em outras palavras quer dizer feiticeiro. Isto significa também que ela
provavelmente foienvenenada, mas pouco se fala sobre os detalhes. Ela está
enterrada bem no meio da aldeia e fizeram um cercadinho com tocos curtos de
troncos de árvore. Era uma criança especial na vida do povo: era um
caciquezinho (neto de um dos caciques da aldeia). Por isso, eles vão fazer este
ano uma festa muito interessante e emblemática entre os povos em que me
encontro. Uma festa famosa no mundo inteiro. Já fizeram até filme sobre esta
festa-ritual. Assim, penso que escrever aqui o nome dessa festa é falar demais.
A festa é uma homenagem aos mortos,
mas somente aos que foram importantes em vida. Sei que vim parar aqui num
momento interessantíssimo, tanto espiritual, como antropologicamente. Portanto,
meus olhos estão abertos e atentos para tudo o que haverá de singular por aqui
neste ano. Vários povos indígenas da região são convidados para essa festa.
Eles trazem os seus lutadores e há um grande campeonato entre eles... Mas não é
sobre a festa que quero falar agora. Quero falar sobre a casa que fica no meio
da aldeia, bem em frente ao lugar em que está enterrado o caciquezinho: a Casa
dos Homens.
Na Casa dos Homens, as mulheres não
podem entrar. Ali, esconde-se uma flauta, que só os homens podem tocar e ver.
Eu entrei ali numa noite. Senti a opressão espiritual do lugar: esta é concreta
e pesada. As flautas estavam cobertas com panos. Perguntei ao índio o que
aconteceria se uma mulher entrasse e olhasse a flauta. Ele demorou muito para
falar e, embora eu já soubesse a resposta, insisti: “Alguma mulher aqui na
aldeia já viu a flauta?” Ele me disse que sim. “E o que aconteceu com ela?”
perguntei. “Os índios fizeram mal pra ela”,ele me disse abaixando a cabeça. “Os
índios fazem mal mesmo se a mulher for uma criança?” continuei para ver como ele
reagiria.“Sim”, respondeu-me.
Eu já sabia. Já havia lido sobre
isso. É mais um daqueles fatos que muitos antropólogos querem justificar
alegando ser “cultural”, todavia, entrar naquela casa, ver a flauta e saber que
ali na minha aldeia mulheres e crianças já haviam sofrido por causa dela...
Quando uma mulher, mesmo que seja uma criança, olha a flauta, então ela é
violentada por todos os homens da aldeia e, muitas vezes, morre-se por causa
disso. Esta é a casa do meio. Esta é Casa dos Homens.
“ Não há justo, nem um
sequer...”
Rm 3: 10a
Publicação
autorizada pelo autor em 12/06/2012
2 comentários:
Querido Carlos, obviamente, quero preservar o nome do povo para não os expor. São situações delicadas e, por vezes, polêmicas. Mas que nos dão uma dimensão sobre a nossa própria humanidade, independente de nossas diferenças culturais.
Abraços!
Com certeza amigo. O seu trabalho é louvável e precioso. Além de ser uma voz acesa na sua região. Amigo, não tem coisa mais agradável do que sentir a sensação de que estamos no meio da história. Nós somos a história. E é claro que a história não precisa repousar sobre cadáveres. Então preserve sim nomes de pessoas. Conte com o apoio do amigo aqui em Pernambuco.
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