sexta-feira, 6 de julho de 2012

O fim - Dias Índios XII (A morte visita a aldeia – 1ª parte de 4) - Autor: professor Wanderely Dantas

No salão de um aeroporto, preparávamos as coisas para o check in. Carregávamos muitas malas e já nos dirigíamos ao balcão de atendimento, quando, repentinamente, Takitakinalo (nome que os índios deram à minha filha mais velha e quer dizer “linda menina”)parou e começou a chorar. Fui até ela e perguntei o que estava acontecendo. "Pai, eu não me lembro mais do cheiro dela"! Afastei-me para trás e também comecei a chorar ao lado da minha filha um choro convulsionado. A Lu me perguntou o que estava acontecendo. "Ela começou a chorar porque não está mais lembrando do cheiro da irmã!... Lu!... Meu Deus... Lu, eu também não me lembro mais do cheiro dela"! Naquele momento, eu percebi que éramos apenas três naquele aeroporto, porque minha filha mais nova estava morta...
 
Quando acordei daquele pesadelo, olhei para o meu lado e todas as três estavam lá comigo na barraca que levantamos dentro da nossa casa na aldeia. Acordei angustiado e só à tarde falei para a Lu sobre aquele sonho. Relutei em compartilhar com ela, porque, ali onde estávamos, tudo parecia tomar uma dimensão muito maior do que realmente poderia ter. Um sonho ruim apenas, mas, qualquer coisa que acontecesse, estaríamos isolados no meio da mata.
 
- Por que você só me contou agora?
 
- Lu, sabe o texto que mais me vem à mente aqui na selva? Aquele em que Paulo fala que carrega em seu próprio corpo as marcas de Cristo. Não sou super-crente, sempre penso na responsabilidade de tê-las trazido conosco. As possíveis doenças, perigos... Então, esse sonho me fez muito mal.
 
- Eu sempre penso - começou a me dizer a Lu - que perigos existem em todos os lugares, basta uma bala perdida atingir você. Veja, amor, o Brasil foi campeão em mortes por gripe suína no mundo e quantas dessas pessoas morreram em grandes centros urbanos? A nossa orientação para estarmos aqui foi clara e indiscutível. Se por acaso perdesse minhas filhas na cidade, sabendo que era aqui que deveríamos estar, isto sim é que não me deixaria em paz! Estamos onde Deus quer, então, precisamos estar preparados para acontecer o que quer que Ele tenha planejado...
 
Naquele final de tarde, fiquei com Takitakinalo e Hototó (minha filha mais nova, que também recebeu um nome indígena e significa “borboleta”)sentado do lado de fora de casa. O Cacique veio em nossa direção e Takitakinalo ficou maravilhada com o colar que ele ostentava em seu pescoço.
 
- Que lindo!!! Disse ela ao Cacique.
 
- Takitakinalo gostou? Diante da resposta afirmativa, ele retirou o colar do pescoço e deu a ela. O que encantou minha filha era a linda cruz que pendia naquele colar todo feito de sementes de tiririca. O Cacique o conseguira com outro povo que vive fora da nossa região. Agora estava Takitakinalo passeando pela aldeia com seu lindo colar feito de sementes de tiririca, sustentando em seu pescoço uma linda cruz. E a quem me perguntava, eu dizia: "Foi o Cacique que deu para ela"! Até que um indígena chegou perto de nós e olhando aquele colar, apontou para a cruz e disse:
 
- É Deus!
 
- O que? Perguntei.
 
- É Deus! Ele repetiu, agora tocando na cruz. - É Taungi, mas o caraíba (branco) chama de Jesus. É Taungi!
 
Na escola indígena da aldeia, já havíamos contado muitas histórias dos povos indígenas da nossa região e, toda vez que aparecia o Taungi, eles o identificavam com Jesus. Entretanto, Taungi é o Sol, irmão da Lua, irmãos gêmeos e ambos netos de Kuatüngü, que eles identificam como "Deus". Há muito tempo, uma onça quis casar com uma das filhas de Kuatüngü, mas este não quis. Então, Kuatüngü criou uma mulher e de quatro madeiras criou os primeiros índios... Como que os homens mais velhos, os que já foram para a cidade, fizeram a ligação entre Taungi e Jesus? Eu não sei. Este sincretismo é um mal terrível já ocasionado pelo contato deles com as diversas culturas não-índias. Só a presença do texto bíblico na língua materna, eu creio, poderá reparar esta confusão. Mas eu olhei nos olhos daquele indígena e disse:
 
- Não, isso aí não é Deus! Aí, é o lugar onde Deus morreu, mas Ele não ficou morto para sempre. Ele saiu da morte para mostrar que a morte não é o fim. Ele está vivo!
 
- ...
 
Eu queria que ele tivesse falado alguma coisa, mas ele não disse nada. Eu queria ter dito tudo isso na língua dele, mas ainda não sei! Eu queria ter essas histórias escritas já na língua, mas ainda não as tenho... Ele apenas olhou para mim e sorriu. Chamaram por ele na casa do rádio. Alguns minutos depois ele voltou com a cabeça baixa.
 
- Professor, meu primo morreu.
 
- Como você soube?
 
- No rádio. Eles estão trazendo o corpo para enterrar aqui. Ele morreu afogado.
 
- Vão enterrar aqui?!
 
- A família estava na outra aldeia, mas eles são daqui... Era uma criança. Era desse tamanho.
 
Ao chegarem com o corpo, vi que era um menino de menos de dois anos de idade. Ele havia se afogado pela manhã e chegaram na nossa aldeia às 3 da tarde. Vi o pai e o seu choro dolorido. Quando vi aquele corpinho sendo carregado, imediatamente lembrei-me do sonho que tivera na noite anterior sobre a morte da minha filha!...






Prof. Wanderley Dantas



Publicação autorizada pelo autor em 11/09/2012

2 comentários:

Fabiana Lopez disse...

Li alguns capítulos dessa Saga ... belíssimo. Vou aos pouco lendo todos até me atualizar e ficar aguardando o capítulo da vez. Devia fazer um livro dessa história.

Wanderley Dantas disse...

Querida Fabiana, muito obrigado por estar acompanhando meus textos. E os aguardando! Quanto à ideia do livro, quem sabe um dia. Abraços e até o próximo.