Quando
entrei em casa, vi sentado em minha rede o índio que nos recebeu em 2007,
quando visitávamos nossa aldeia pela primeira vez. Eu tenho por ele profundo
carinho, pois vejo bem suas dificuldades na aldeia e sua baixa auto-estima: ele
é negro e os povos da minha região são profundamente preconceituosos.
Ele estava rodeado de outros índios e índias que
riam um riso escondido ao lado dele. Aproximei-me. Vi que eles estavam vendo
fotos tiradas numa festa no ano passado. Mas era uma foto específica que estava
gerando sorrisos e olhares maliciosos. Era uma índia, uma jovem índia de uns 20
anos de idade. Ao me verem, todos saíram. Ele permaneceu sentado na minha rede.
-Hapitihítso - disse ele para mim, mostrando-me a
foto.
-O que é isso? – perguntei.
-Hapitihítso – repetiu, enquanto os outros índios
riam e saíam de perto.
-Eu não sei o que isso significa.
-Ela, essa menina na foto, ela é hapitihítso –
disse novamente, enquanto índios e índias que estavam na casa riam e, mesmo
diante do meu desconserto, ele não falou mais nada. Afastei-me para sair da
casa. Quando já à porta, outro índio segurou meu braço e me puxou para perto de
si.
-Hapitihítso... Você não sabe o que é? – disse ele
em voz baixa como que prestes a me revelar um segredo.
-Não, não faço a menor idéia.
-“Mulher do vovô”. Hapitihítso é “mulher do vovô” -
Percebendo que eu estava para descobrir algo submerso em águas profundas,
esforcei-me ao máximo para não expressar nenhum traço de surpresa, mesmo diante
de um provável escândalo.
-“Mulher do vovô”... Mas isso é o quê?
-É a menina que o pai não deixa casar e fica em
casa para namorar o pai. A gente chama de “mulher do vovô” – disse-me. Eu
precisava disfarçar o meu estado de choque, pois me preparara para muitas
coisas, mas realmente fiquei perplexo com aquilo.
-O pai namora a filha? Eles deitam juntos? – não
sabia bem como me expressar.
-É. O pai não deixa a filha casar para ficar
fazendo sexo com ela –disse-me o índio.
-Isso acontece muito? Quero dizer, acontece muito o
pai namorar a filha? – Eu não podia transparecer o meu escândalo, eu precisava
fazer com que ele confiasse e se sentisse à vontade para continuar a conversa.
-Acontece.
-Aqui na nossa aldeia acontece isso?
-Não, só na outra aldeia... Mas você não pode
contar para ninguém que eu te disse isso. Você não pode dizer que fui eu quem
te disse isso!
Ao
estudar as culturas indígenas da minha região, aprendi que expressões como “só
na outra aldeia” são ditas para se esconder algo que acontece ali também.
Adultério, infanticídio e incesto são sempre apresentados como coisas que só
acontecem “fora da aldeia”. Ou na roça ou na outra aldeia, mas nunca dentro da
comunidade.
Publicação autorizada pelo autor em 13/08/2012
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