Paulo
nunca bateu bem da cabeça.
Pelo menos era isso que todos pensavam dele e não era por nada demais apesar
de ser um consenso.
A cada atitude um pouco fora de esquadro as pessoas comentavam: - Ele é meio
abilolado! e deixavam pra lá.
Paulo era mesmo um tanto esquisito. Ele separava o lixo orgânico do seco,
não traia a mulher, tratava bem a sogra, gostava de trabalhar, acompanhava
futebol sem entusiasmo e não gostava de cerveja, entre outras esquisitices.
A mais curiosa porém era falar sozinho.
Paulo era quem costumamos chamar de resmungão.
Não dava para entender nada do que ele dizia, mas ele vivia falando o que
pareciam ser pequenas frases, nessa língua do murmúrio.
Tirando isso era um cara normal. Adorava sextas e detestava segundas, dormia
só de cueca, deixava a toalha molhada sobre a cama, arrotava depois da
Coca-Cola e não gostava de fazer supermercado, enfim um homem comum.
Mas a partir daquela quinta-feira as coisas mudaram.
Ele saiu de casa no horário de sempre e chegou atrasado ao trabalho.
Inquirido do motivo pelo chefe contou perturbado que quase havia morrido
quando um caminhão de cebola por pouco não o havia atropelado.
Apesar das esquisitices de Paulo, o chefe e os colegas olharam a roupa
amarrotada, o suor nada habitual e lembrando-se da costumeira pontualidade
do abilolado acreditaram na história e deixaram pra lá.
Mas Paulo estava diferente, seus murmúrios agora eram frases audíveis em
dois tons de voz.
No começo ninguém, nem no trabalho, nem na família ou no grupo de amigos deu
muita importância para essa mudança de comportamento. Uns acharam que era
apenas mais uma das suas esquisitices, outros que era resultado passageiro
do trauma causado pelo quase atropelamento.
Infelizmente, com o tempo ninguém mais pode negar que aquela mania estava
incomodando.
Quando Paulo olhava futebol, cada voz torcia por um time e ninguém conseguia
prestar a atenção no jogo.
Quando a filha adolescente pedia para sair à noite uma voz respondia que
tudo bem e a outra mandava a filha perguntar para a mãe.
Era um horror!
No escritório da fábrica o problema não era tão sério porque Paulo
trabalhava há mais de vinte e cinco anos sozinho, revisando, organizando e
arquivando pilhas e pilhas de papéis, mas a família começou a temer que ele
perdesse o emprego quando as vozes começaram a tomar atitudes.
Uma voz sempre separava o lixo. A outra, só às vezes.
Uma voz era carinhosa com a esposa, a outra queria sexo hardcore.
Então a família levou Paulo, que aceitava e recusava, a médicos.
O primeiro diagnosticou esquizofrenia e a muito custo a mulher conseguiu
faze-lo aceitar o tratamento, mas sem nenhum sucesso.
Paulo acabou sendo afastado do trabalho, do que reclamou e deu graças a
Deus.
A família continuou o calvário na busca de um fim para as vozes e o levou a
inúmeros médicos, igrejas, templos, terreiras, casas espíritas e centros
holísticos. Apelaram para tudo até chegarem à falência, mas nada fazia as
vozes sumirem.
Aos poucos as pessoas foram se afastando. Primeiro os colegas de trabalho,
depois os poucos amigos e por fim a família.
A sogra achou por bem morar num asilo.
O irmão mais moço pegou todos seus pertences, uma mochila de roupas, uma
prancha de surf e vinte anos de mesada que Paulo lhe dava e foi tentar a
vida na Austrália.
A filha engravidou e foi morar com o namorado.
Restou a mulher que já muito cansada não notou que Paulo falava cada dia
menos.
Uma manhã Paulo encontrou um bilhete no lugar da mulher. Nele apenas uma
palavra: CHEGA, em letras grandes.
Ele achou bom e ruim.
Ficou mais meia hora na cama, depois se vestiu e foi caminhar, como de
costume.
E começou...
E se não fosse um caminhão de cebolas, fossem bananas ou frangos?
E se não fosse um caminhão?
E se eu não estivesse lá?
E se o meu nome não fosse Paulo, fosse João será que a história seria
diferente?
E caiu no riso.
Nem notou que as vozes agora não passavam de pensamentos e que nem eram tão
dissonantes assim.
Bárbara A. Sanco - Porto Alegre/RS
http://barbarasanco.blogspot.com.br/
Publicação autorizada através de e-mail de 07/09/2012
Pelo menos era isso que todos pensavam dele e não era por nada demais apesar
de ser um consenso.
A cada atitude um pouco fora de esquadro as pessoas comentavam: - Ele é meio
abilolado! e deixavam pra lá.
Paulo era mesmo um tanto esquisito. Ele separava o lixo orgânico do seco,
não traia a mulher, tratava bem a sogra, gostava de trabalhar, acompanhava
futebol sem entusiasmo e não gostava de cerveja, entre outras esquisitices.
A mais curiosa porém era falar sozinho.
Paulo era quem costumamos chamar de resmungão.
Não dava para entender nada do que ele dizia, mas ele vivia falando o que
pareciam ser pequenas frases, nessa língua do murmúrio.
Tirando isso era um cara normal. Adorava sextas e detestava segundas, dormia
só de cueca, deixava a toalha molhada sobre a cama, arrotava depois da
Coca-Cola e não gostava de fazer supermercado, enfim um homem comum.
Mas a partir daquela quinta-feira as coisas mudaram.
Ele saiu de casa no horário de sempre e chegou atrasado ao trabalho.
Inquirido do motivo pelo chefe contou perturbado que quase havia morrido
quando um caminhão de cebola por pouco não o havia atropelado.
Apesar das esquisitices de Paulo, o chefe e os colegas olharam a roupa
amarrotada, o suor nada habitual e lembrando-se da costumeira pontualidade
do abilolado acreditaram na história e deixaram pra lá.
Mas Paulo estava diferente, seus murmúrios agora eram frases audíveis em
dois tons de voz.
No começo ninguém, nem no trabalho, nem na família ou no grupo de amigos deu
muita importância para essa mudança de comportamento. Uns acharam que era
apenas mais uma das suas esquisitices, outros que era resultado passageiro
do trauma causado pelo quase atropelamento.
Infelizmente, com o tempo ninguém mais pode negar que aquela mania estava
incomodando.
Quando Paulo olhava futebol, cada voz torcia por um time e ninguém conseguia
prestar a atenção no jogo.
Quando a filha adolescente pedia para sair à noite uma voz respondia que
tudo bem e a outra mandava a filha perguntar para a mãe.
Era um horror!
No escritório da fábrica o problema não era tão sério porque Paulo
trabalhava há mais de vinte e cinco anos sozinho, revisando, organizando e
arquivando pilhas e pilhas de papéis, mas a família começou a temer que ele
perdesse o emprego quando as vozes começaram a tomar atitudes.
Uma voz sempre separava o lixo. A outra, só às vezes.
Uma voz era carinhosa com a esposa, a outra queria sexo hardcore.
Então a família levou Paulo, que aceitava e recusava, a médicos.
O primeiro diagnosticou esquizofrenia e a muito custo a mulher conseguiu
faze-lo aceitar o tratamento, mas sem nenhum sucesso.
Paulo acabou sendo afastado do trabalho, do que reclamou e deu graças a
Deus.
A família continuou o calvário na busca de um fim para as vozes e o levou a
inúmeros médicos, igrejas, templos, terreiras, casas espíritas e centros
holísticos. Apelaram para tudo até chegarem à falência, mas nada fazia as
vozes sumirem.
Aos poucos as pessoas foram se afastando. Primeiro os colegas de trabalho,
depois os poucos amigos e por fim a família.
A sogra achou por bem morar num asilo.
O irmão mais moço pegou todos seus pertences, uma mochila de roupas, uma
prancha de surf e vinte anos de mesada que Paulo lhe dava e foi tentar a
vida na Austrália.
A filha engravidou e foi morar com o namorado.
Restou a mulher que já muito cansada não notou que Paulo falava cada dia
menos.
Uma manhã Paulo encontrou um bilhete no lugar da mulher. Nele apenas uma
palavra: CHEGA, em letras grandes.
Ele achou bom e ruim.
Ficou mais meia hora na cama, depois se vestiu e foi caminhar, como de
costume.
E começou...
E se não fosse um caminhão de cebolas, fossem bananas ou frangos?
E se não fosse um caminhão?
E se eu não estivesse lá?
E se o meu nome não fosse Paulo, fosse João será que a história seria
diferente?
E caiu no riso.
Nem notou que as vozes agora não passavam de pensamentos e que nem eram tão
dissonantes assim.
Bárbara A. Sanco - Porto Alegre/RS
http://barbarasanco.blogspot.com.br/
Publicação autorizada através de e-mail de 07/09/2012
5 comentários:
Seja bem vida à família Gandavos, Bárbara A. Sanco. Parabéns pelo seu blog http://barbarasanco.blogspot.com.br/
e pelo belíssimo texto AS VOZES publicado por cá.
Obrigada Carlos, pelo elogio e pela gentileza. Adorei o seu blog.
Que texto criativo! Lembrou-me deveras Machado de Assis. Parabéns! Bárbara, acho que somos todos dessa maneira mesmo: essas vozes em nós, na verdade, talvez não sejam tão dissonantes assim. Gostei demais! Abraços!
Obrigada Wanderley, fico muito lisonjeada pela comparação com Machado. Quis brincar com a ideia de que cada um é um mundo, um mundo em transformação, e quando sufocado pode surtar em busca de espaço para expansão. Mais uma vez obrigada pelas gentis palavras! Abraço para você também!
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