segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Faces da inspiração - Autor: Carlos Lopes

Uma lembrança que emerge da nossa mente pode transformar-se em inspiração, quando interessa-nos preservá-la e torná-la uma leitura imponente aos olhos do leitor. Ao que me parece, nem sempre a inspiração se manifesta apenas diante de uma realidade harmoniosa, de uma bela paisagem, ou um lugar festivo. Muitas vezes ela flui em meio a contratempos, como em certa vez que escrevi o texto ¨Jardim das Almas¨, em um momento de tristeza, após sepultar um animal de estimação. Vejamos uma outra situação: em um dia ¨daqueles¨, não percebi o perigo oculto numa aparentemente inofensiva poça de água no asfalto, que me obrigou a parar na borracharia mais próxima. Diga-se de passagem, ao contrário da pejorativa fama popular, aquela borracharia não ostentava paredes sujas de graxa, ou cartazes de nudez feminina, espalhados em seus recantos; apenas era visível uma gaiola suspensa no teto, onde um canário ¨estalava¨ seu canto, ¨esfriando¨ um outro canário mudo preso numa gaiola, a qual estava entre as pernas de um conviva do proprietário. Aqueles dois canários do tipo cabeça-de-fogo, sendo um cantador e o outro mudo, remeteram-me aos meus tempos de estudante, quando fazia parte de um grupo teatral do Colégio Municipal Padre Leão, lá em Custódia, interior do Pernambucano. Naquela peça de teatro interpretei um jornalista, personagem este, que mesmo diante da sua própria relutância, contratou os serviços de uma simpática senhora de uns setenta anos, para cuidar de sua casa. Chamava-se Carlota e outrora fora muito rica, sendo então muito conveniente para ela trabalhar em apartamentos de homens solteiros e que se ausentavam de casa por mais tempo. Eram oportunidades nas quais Carlota convidava suas amigas para cerimoniais e agia como se fosse a própria dona da casa. E um dia, em meio a um chá das quartas feiras, a governanta foi desmascarada diante das amigas, que fingiam não saber dos desatinos vividos pela amiga. Ao final da apresentação nem um mísero aplauso arrancamos da platéia. O canário que deveria cantar ao final da peça simbolizando uma nova vida para Carlota, até se ouviu cantar, porém nenhum espectador entendeu a mensagem, pois afinal a ave que deveria ser de plástico, cantou, estalou e incomodou a todos durante o transcorrer da peça, não chamando a atenção quando precisou ser realmente ouvida. Escrever é uma necessidade humana com seus desdobramentos; enquanto a inspiração é uma donzela que não dispensa mimos e cuidados. Ao recordar daquela jante danificada do meu carro que me conduziu a uma borracharia e por consequência aos canários que me reportaram àquela peça de teatro apresentada em 1976, fui estimulado, dezenas de anos atrás, a escrever peças de teatro. Escrever por escrever é muito distinto de utilizar-se da inspiração para produzir algo que o leitor entenda como fruto de uma inspiração. Um pouco de tempo depois percebi que estimular a inspiração é o suficiente, seja através do resgate das lembranças, ou por fatos novos que nos motivam a deflagrá-la. Afinal na ânsia pela inspiração cada autor se utiliza de artimanhas, algumas delas até impensadas pelo leitor. E por esta e outras, muitas vezes nossa cabeça vira um caos quando a inspiração insiste em mudar de endereço. É como diz a mãe de um amigo meu: ¨Cérebro é igual batata seca, por mais que se esprema tem dias que não sai nem uma gota de água¨. Mas, pensando no que inspira, às vezes, fico com a impressão de que o texto já está todo lá e bastou apenas uma desculpa para ele sair de dentro da gente. A desculpa pode ser uma revolta, uma cena, um verso ouvido, uma canção, um beijo molhado, um desejo realizado ou frustrado. Seja lá o que for, parece mesmo que eu não escrevo, mas reajo. É claro que, depois, volto e burilo o que apareceu ali "de repente" na telinha do lap top.
 

Autor: Carlos Lopes
Olinda/PE

 
* Este é um texto do qual não me orgulho de haver escrito. Sou apenas um contista esforçado. A Celêdian Assis fez o que pode para melhorá-lo; do amigo Fábio Ribas abocanhei, literalmente, o final. Portanto, dedico o texto a estes dois amigos.
 
 

5 comentários:

Wanderley Dantas disse...

Há dias, diz minha mãe, que o cérebro é igual batata seca: por mais que se esprema não sai nem uma gota de água... rsrsrs

Mas, pensando no que inspira, às vezes, fico com a impressão de que o texto já está todo lá e bastou apenas uma desculpa para ele sair de dentro de mim. A desculpa pode ser uma revolta, uma cena, um verso ouvido, uma canção, um beijo molhado, um desejo realizado ou frustrado. Seja lá o que for, parece mesmo que eu não escrevo, mas reajo. É claro que, depois, volto e burilo o que apareceu ali "de repente" na telinha do lap top. Abraços!

Celêdian Assis disse...

Meu amigo Carlos, ai tem a sua inspiração, tem o exercício de transformar as suas lembranças em um ensaio, um texto literário livre de formalidades, sem rígidas normas e fronteiras, no qual você discorre sobre a temática segundo o seu ângulo subjetivo, ou seja, do seu próprio ponto de vista, o que merece consideração. Portanto, não há porque não se orgulhar de seu trabalho. Obrigada meu amigo, por dedicar-me o texto, mas a ajuda a que se refere foi apenas de estruturação do texto e o mérito é todo seu, pois você soube usar bem a sua inspiração, para então conceituá-la.
Um grande abraço,
Celêdian

Carlos A. Lopes disse...

Agradeço aos amigos Celêdian Assis e a Fábio Ribas pela participação decisiva no meu texto FACES DA INSPIRAÇÃO.

João Carlos Hey disse...

A inspiração tem seus mistérios. Muitas vezes não sei porque escrevi um poema quando queria escrever um conto e vice-versa. Também não sei como consegui cometer uma poesia começando pelo último verso e terminando no primeiro. Nem como já tinha o final da história se nem sabia como começá-la. Ou, então, tinha o começo mas não tinha a menor ideia de como ela terminaria. Gostei muito da sua crônica.

Wanderley Dantas disse...

Carlos, foi um prazer escrever este texto à seis mãos rsrsrs ficou ótimo. Parabéns! Abraços.