Uma lembrança que emerge da nossa mente pode
transformar-se em inspiração, quando interessa-nos preservá-la e torná-la uma
leitura imponente aos olhos do leitor. Ao que me parece, nem sempre a
inspiração se manifesta apenas diante de uma realidade harmoniosa, de uma bela
paisagem, ou um lugar festivo. Muitas vezes ela flui em meio a contratempos,
como em certa vez que escrevi o texto ¨Jardim das Almas¨, em um momento de
tristeza, após sepultar um animal de estimação. Vejamos uma outra situação: em
um dia ¨daqueles¨, não percebi o
perigo oculto numa aparentemente inofensiva poça de água no asfalto, que me
obrigou a parar na borracharia mais próxima. Diga-se de passagem, ao contrário
da pejorativa fama popular, aquela borracharia não ostentava paredes sujas de
graxa, ou cartazes de nudez feminina, espalhados em seus recantos; apenas era
visível uma gaiola suspensa no teto, onde um canário ¨estalava¨ seu canto, ¨esfriando¨
um outro canário mudo preso numa gaiola, a qual estava entre as pernas de um
conviva do proprietário. Aqueles dois canários do tipo cabeça-de-fogo, sendo um
cantador e o outro mudo, remeteram-me aos meus tempos de estudante, quando
fazia parte de um grupo teatral do Colégio Municipal Padre Leão, lá em
Custódia, interior do Pernambucano. Naquela peça de teatro interpretei um
jornalista, personagem este, que mesmo diante da sua própria relutância, contratou
os serviços de uma simpática senhora de uns setenta anos, para cuidar de sua
casa. Chamava-se Carlota e outrora fora muito rica, sendo então muito
conveniente para ela trabalhar em apartamentos de homens solteiros e que se
ausentavam de casa por mais tempo. Eram oportunidades nas quais Carlota
convidava suas amigas para cerimoniais e agia como se fosse a própria dona da
casa. E um dia, em meio a um chá das quartas feiras, a governanta foi
desmascarada diante das amigas, que fingiam não saber dos desatinos vividos
pela amiga. Ao final da apresentação nem um mísero aplauso arrancamos da
platéia. O canário que deveria cantar ao final da peça simbolizando uma nova
vida para Carlota, até se ouviu cantar, porém nenhum espectador entendeu a
mensagem, pois afinal a ave que deveria ser de plástico, cantou, estalou e
incomodou a todos durante o transcorrer da peça, não chamando a atenção quando
precisou ser realmente ouvida. Escrever é uma necessidade humana com seus
desdobramentos; enquanto a inspiração é uma donzela que não dispensa mimos e
cuidados. Ao recordar daquela jante danificada do meu carro que me conduziu a
uma borracharia e por consequência aos canários que me reportaram àquela peça
de teatro apresentada em 1976, fui estimulado, dezenas de anos atrás, a escrever
peças de teatro. Escrever por escrever é muito distinto de utilizar-se da
inspiração para produzir algo que o leitor entenda como fruto de uma
inspiração. Um pouco de tempo depois percebi que estimular a inspiração é o
suficiente, seja através do resgate das lembranças, ou por fatos novos que nos
motivam a deflagrá-la. Afinal na ânsia pela inspiração cada autor se utiliza de
artimanhas, algumas delas até impensadas pelo leitor. E por esta e outras,
muitas vezes nossa cabeça vira um caos quando a inspiração insiste em mudar de
endereço. É como diz a mãe de um amigo meu: ¨Cérebro é igual batata seca, por
mais que se esprema tem dias que não sai nem uma gota de água¨. Mas, pensando no que inspira,
às vezes, fico com a impressão de que o texto já está todo lá e bastou apenas
uma desculpa para ele sair de dentro da gente. A desculpa pode ser uma revolta,
uma cena, um verso ouvido, uma canção, um beijo molhado, um desejo realizado ou
frustrado. Seja lá o que for, parece mesmo que eu não escrevo, mas reajo. É
claro que, depois, volto e burilo o que apareceu ali "de repente" na
telinha do lap top.
Autor: Carlos Lopes
Olinda/PE
* Este é um texto do qual não me orgulho de
haver escrito. Sou apenas um contista esforçado. A Celêdian Assis fez o que pode para melhorá-lo; do amigo
Fábio Ribas abocanhei, literalmente, o final. Portanto, dedico o texto a estes
dois amigos.
5 comentários:
Há dias, diz minha mãe, que o cérebro é igual batata seca: por mais que se esprema não sai nem uma gota de água... rsrsrs
Mas, pensando no que inspira, às vezes, fico com a impressão de que o texto já está todo lá e bastou apenas uma desculpa para ele sair de dentro de mim. A desculpa pode ser uma revolta, uma cena, um verso ouvido, uma canção, um beijo molhado, um desejo realizado ou frustrado. Seja lá o que for, parece mesmo que eu não escrevo, mas reajo. É claro que, depois, volto e burilo o que apareceu ali "de repente" na telinha do lap top. Abraços!
Meu amigo Carlos, ai tem a sua inspiração, tem o exercício de transformar as suas lembranças em um ensaio, um texto literário livre de formalidades, sem rígidas normas e fronteiras, no qual você discorre sobre a temática segundo o seu ângulo subjetivo, ou seja, do seu próprio ponto de vista, o que merece consideração. Portanto, não há porque não se orgulhar de seu trabalho. Obrigada meu amigo, por dedicar-me o texto, mas a ajuda a que se refere foi apenas de estruturação do texto e o mérito é todo seu, pois você soube usar bem a sua inspiração, para então conceituá-la.
Um grande abraço,
Celêdian
Agradeço aos amigos Celêdian Assis e a Fábio Ribas pela participação decisiva no meu texto FACES DA INSPIRAÇÃO.
A inspiração tem seus mistérios. Muitas vezes não sei porque escrevi um poema quando queria escrever um conto e vice-versa. Também não sei como consegui cometer uma poesia começando pelo último verso e terminando no primeiro. Nem como já tinha o final da história se nem sabia como começá-la. Ou, então, tinha o começo mas não tinha a menor ideia de como ela terminaria. Gostei muito da sua crônica.
Carlos, foi um prazer escrever este texto à seis mãos rsrsrs ficou ótimo. Parabéns! Abraços.
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