Autor: Carlos A. Lopes
Ana Rosa nasceu em Brejo Santo, uma vila próspera, cujo proprietário era Seu Dionísio Rosa, seu próprio pai. Não se sabe de onde ele veio, apenas que certo dia desmontou do seu cavalo para beber uns goles de água e acabou comprando aquelas terras no Moxotó, interior de Pernambuco. Pouco tempo depois de se instalar, inaugurou sua própria fábrica, fez um chalé voltado para a rodagem, desposou a filha de um rancheiro e se destacou na região no ramo da produção de caroá, planta com um tipo de fibra usada para a produção de cordas e têxtil; mais tarde, diante da perda de importância do caroá, investiu naquilo que se chamou de ¨febre¨do agave, também um tipo de fibra mais conhecida como sisal.
A bela e às vezes ardilosa Ana Rosa era filha única de Seu Dionísio e de Dona Miúda. Ela, uma criança trelosa, cresceu divertindo-se entre o terreiro, a fábrica, o engenho e nas águas do Rio Marecas, o qual corria por trás da sua casa. Seu maior sonho era ser professora e por ser filha de um homem de posses, desejava estudar na capital e banhar-se no mar. No entanto, o Recife estava distante demais dos olhos do pai. Um meio termo encontrado pelo seu pai foi enviá-la para estudar no Convento de Freiras de Campos Velhos, a poucos quilômetros dali. De lá Ana retornou antes dos dezesseis anos, a fim de tratar-se de dissonia. E por conta dos distúrbios do sono, ela justificava suas alterações emocionais súbitas. O pai viu naquela oportunidade a chance de cortar um mal pela raiz, pois não simpatizava com a ideia de ver a filha desejosa de prestar os votos de santidade como freira. Sendo ele um homem precavido, tratou de construir uma bela escola em Brejo Santo para a filha lecionar e também ¨apalavrou¨ a mão dela para o jovem Zequinha, o filho caçula de um político de Serra Negra, cidade que dividia limites territoriais. E dessa relação que se consumou mais tarde, nasceram os filhos: João, Águida, Anaurelina, Inês e Augusto.
Naquela época, Brejo Santo caminhava na direção de tornar-se distrito de Ingazeiras. Ali já funcionava um posto de gasolina, vendiam-se veículos, havia cultos em uma capela de janelas de arcos e crianças tinham onde estudar; isso sem falar da existência de uma feira semanal, cuja importância despertou a atenção até de gente da capital. E por conta dessa feira, numa manhã de muito sol, apareceu por lá um sujeito apreciador de objetos de adorno, dizendo se chamar Almeida. Ele, além de jovem garboso, era um habilidoso negociante de porcos, bodes, galinhas e ovos, coisas que revendia na capital. Alguns dias de feiras se passaram e Ana Rosa já havia se encantado com aquele jovem de sorriso desconfiado. A partir daí ¨choviam¨convites para cafés, almoços e passeios pelas adjacências da fazenda, na companhia da filha do dono do lugar; daí para Zequinha flagrá-los em situação duvidosa, era uma questão de tempo. E nem demorou tanto assim. Num desses encontros furtivos, Zequinha, que por alguma razão desfez a viagem que planejou para o Pajeú, entrou em estado de choque, ao presenciar sua esposa na cama, enroscado nos braços daquele desconhecido. Ao contrário do que seria habitual, Zequinha disparou a correr estrada afora, na direção de Serra Negra, gritando:— Papai, mamãe, quero voltar pra casa!
De Serra Negra, logo no dia seguinte Zequinha foi conduzido por familiares ao Recife, só retornando a Brejo Santo no mês seguinte. De volta, ainda em Cruz das Almas, perto de casa, seus filhos o esperavam, ocasião na qual se emocionaram e se enroscaram às suas pernas. Mais tarde no leito do casal, Ana Rosa implorou seu perdão de joelhos, jurando-lhe amor eterno. Ele apenas a ouviu, distraidamente e o seu comportamento a partir dali, não se parecia em nada com o Zequinha de antes. Vivia em constante“lundum”, oportunidade que se isolava de todos se escondendo na mata tal um bicho bruto. Por último, Ana Rosa despertou numa manhã com Zequinha ensacando roupas e pertences, quando lhe perguntou: — Onde tu vai, homem? De pronto, ele lhe respondeu: — Me deixe, mulher, só me deixe! A esposa entendeu que tratava-se de mais uma esquisitice do marido, virou de lado e adormeceu. Zequinha desceu pelo canavial, até que tomou o rumo dos fornos de fazer carvão, mas querendo deixar vestígios, suas sandálias foram abandonadas na porta de uma das caieiras , ocasião em que se atirou de corpo sobre brasas impiedosas, que lhe tiraram a vida numa questão de segundos.
A morte do vaqueiro Zequinha causou comoção nos habitantes da região. Já diz o ditado que, “desgraça nunca caminha desacompanhada”. De modo que, o velório simbólico ainda ocorria, quando sua mãe, Dona Miúda veio a falecer. Ela sofria de doença do coração, cansava-se do nada e suas pernas inchavam com frequência. Enfim, não houve espaço no pequeno cemitério de Brejo Santo para acomodar as tantas pessoas que acompanharam o seu cortejo. Na saída do cemitério, entre lágrimas e mea-culpa, Ana Rosa prometeu ao seu pai, que só viveria para os filhos e também para cuidar da sua saúde. Mas não foi isso que aconteceu! Não se passou muito tempo e Almeida estava de volta a Brejo Santo, sob o pretexto de comprar imagens e oratórios esculpidos em madeira. Sempre elegante e de boa conversa, logo despertou um novo desejo em Ana Rosa, que lhe enviou um bilhete ensejando um encontro. Na hora combinada Ana Rosa o esperava sob as mangueiras, local muito comum para os dois. Almeida se fez presente, ocasião em que demonstrava estar febril de amor e desejoso de novas esperanças. E ali, frente a frente, tudo parecia recomeçar para eles. Ele segurou a mão de Ana e em seguida a beijou, quebrando a tensão inicial. Ana, com a ajuda do amante, recostou-se sobre a folhagem e teve início uma agonia de desejo incontido de ambas as partes. Almeida era um bom amante e sabia como conduzir uma mulher ao delírio da satisfação. Algum tempo se passou até que os corpos foram contemplados pela realização do orgasmo mútuo. Depois de saciados, Ana Rosa atirou-lhe uma pergunta, enquanto recompunha-se com suas vestimentas: — Você casaria comigo? Ele quase que adormecido, dá-lhe a resposta: — Seria meu sonho! Porém seus cinco filhos, juntando com os meus três do meu casamento desfeito, não nos dão razão para casar. Calada, Ana Rosa sumiu por dentro do canavial.
Depois daquele encontro, numa tarde de domingo, Augusto, o filho mais velho de Ana Rosa pediu socorro ao avô: — Mãinha misturou alguma coisa na água de beber dos meninos. Eles estão passando mal. Ao chegar na casa, Dionísio avistou os netos se contorcendo de dores. Queixavam-se de incômodos no estômago; Águida, a mais velha das meninas, disse: — Vô, manda parar, vô! Faz passar logo essa dor. Em um canto da sala Ana Rosa chorava, com a cabeça entre as suas pernas. De início Ana não falava ¨coisa-por-coisa¨. Parecia ter perdido a noção da realidade. Logo voltou ao normal e se dirigiu ao pai, consternada: — Matei meus meninos...! Algum tempo depois levantou a cabeça e olhando para o pai, disse: — Me perdoe, meu pai, por favor! Nestas alturas Augusto já estava emocionado, mas continuou contando a história, com riqueza de detalhes: depois dos infortúnios ocorridos com a minha família, certo dia fui despertado na cama, pelo meu avô, que contou da urgência de irmos até a cidade de Flores, onde a minha mãe cumpria pena prisional, pela morte dos meus quatro irmãos, por envenenamento. Estando lá, o delegado nos contou sobre as chuvas caídas na região do Pajeú e do inesperado raio que atingiu a parede que dividia duas celas, ocasionando o desabamento de uma delas sobre o corpo da minha mãe. Ela estava à beira da morte e não havia muito que fazer, pelo menos foi o que o médico confidenciou ao meu avô em nossa chegada. A cena que presenciei foi a mais triste da minha vida. Do corpo da minha mãe, somente a cabeça e um dos braços não estavam soterrados. Ela parecia dormir ou não sentir dor alguma. Em lágrimas clamei seu nome, imaginando que não mais estivesse ali com vida. E para nossa surpresa, ela abriu os olhos e disse: — Eu estava só lhe esperando. Ela me olhou como se tentasse ler meus pensamentos; em seguida percebeu a presença do meu avô; voltou a olhar para mim e desfaleceu espiando a luz da vela acesa, que eu segurava na sua mão. E dali para a morte, pouco demorou, segundo o médico, menos de dez minutos.
Levamos mãinha para ser enterrada em Brejo Santo. Ainda no cemitério, o meu avô me confidenciou do seu desencanto pela região. Depois do enterro pedi-lhe que partíssemos daquele lugar, de uma vez por todas. Na minha decisão pesou também uma história envolvendo um bandoleiro de Vila Bela, que vivia fugindo da polícia pelas caatingas, era apelidado de Lampião. Ele insistia em enviar-lhe desaforos, queria parte do dinheiro do meu avô. Certa vez, escutei sem querer, um recado para o tal bandido: — Aqui ele só vai achar com quem brigar. O coiteiro, um mês depois, na beira da estrada, pronunciou uma decisão do ¨bandido social¨ nordestino: — Ele vai engolir o dito, pela ponta do meu punhal. E por esta e outras, deixamos aquela região para trás.
No Recife, montamos residência no Engenho Madalena, onde viviam parentes e amigos do meu avô, coisa do tempo da sua juventude. Nessa época, ele resolveu depositar em mim o seu último sonho de vida: eu deveria ser um médico. Logo fui matriculado no Colégio Salesiano, no Bairro da Boa Vista, onde fomos residir. Infelizmente o meu avô não pode contemplar o seu sonho realizado, morreu vítima de um ataque fulminante do coração, quando cochilava no sofá da sala, um ano antes da minha formatura em medicina, pela Faculdade de Medicina do Recife. E para entender melhor o que se passou na cabeça da minha mãe, anos depois me tornei um psicanalista. Minha mãe era uma pessoa doente. Ela viveu numa época onde a ignorância caminhava em passos largos a frente da razão. Foi uma mãe zelosa até a desgraça se abater sobre todos nós. Não havia como resistir. E não há o que se fazer, tampouco nada trará meus irmãos de volta. Não consigo odiá-la! Eu a amo. Falo dela aos meus filhos quase todos os dias. Ela faz parte das nossas orações. Naquele dia, eu só escapei da morte porque já era crescido e suspeitei de tanta bondade dela em medicar filhos, quando nenhum de nós não reclamava de dor alguma.
E por falar naquela época, mantenho Brejo Santo no abandono. De lá não entra nem sai coisa alguma, tudo deve lá permanecer como um cemitério, que vai enterrando suas lembranças a cada tijolo que desmorona. Da última vez em que lá estive, o cenário que presenciei era muito diferente daquela realidade da minha infância. Um lugar fantasma! Imaginei até que por detrás das ruínas visíveis, havia outras edificações e até poderia encontrar pessoas remanescentes. Todos morreram! Lá só residem duas famílias, porque lhes dou as condições para que mantenham tudo como desejo que permaneça. Apenas um bueiro e uma prensa de madeira insistem em ficar de pé e remetem curiosos aos fatos ocorridos noutros tempos. No mais, a caantiga avança sobre vestígios de moradias e sonhos de vida. É assim que deve ser. Um dia nada ali será lembrança. Ninguém deve se lembrar de que existiu uma Vila de nome Brejo Santo.
Autor:
Carlos A Lopes
Olinda - Pernambuco
Nenhum comentário:
Postar um comentário