segunda-feira, 9 de julho de 2012

Ngüne atütü - Dias Índios (IX) - Autor: Professor Wanderley Dantas


Casa linda: ngüne atütü! O que mais eu poderia dizer? Em qual língua expressar a alegria de finalmente vê-la construída? Não somente vê-la construída, mas certamente admirá-la. A casa é grande, a casa é maravilhosa, muito além de nossas expectativas. Mas sei que é mais que uma casa: é uma vitória de Deus!

Ano passado, o cacique havia me procurado ainda em Brasília para dizer que iria construí-la, mas passadas algumas semanas houve um incêndio ao redor da aldeia que destruiu aquilo que seria usado como telhado de nossa casa, o sapê.

Combinamos que eu entraria sozinho até que a casa estivesse pronta para que eu levasse minha família comigo. Foram meses de solidão, de solidão com Deus. Sem esposa, sem filhas, todavia com a promessa em meu peito de que Deus nos levaria à aldeia em condições mínimas de moradia. Bastaria um telhado…

Janeiro passou, fevereiro passou e março também… Tornei-me eu mesmo uma casa, mas para minhas dúvidas: será que eles me queriam ainda ali? A construção da casa pela comunidade era algo fundamental na nossa comunicação intercultural, era a maneira do povo dizer se nos queriam mesmo ali entre eles ou não. Assim, esperei durante todo mês de abril.

Descobri, enfim, que havia jogos de poder por trás das cortinas desse palco -a disputa entre as lideranças sobre a quem eu pertencia. Eu era o professor de um cacique ou eu era o professor da comunidade? As intrigas, as tramas, os jogos culturais haviam há muito se deflagrado, entretanto demorei a descobrir. Até que um dia a comunidade aproveitou-se da ausência do cacique que me recebera em sua casa, fazendo uma reunião sem ele e determinando que a minha casa fosse construída em outro lugar.

Deixe-me explicar melhor. O cacique que me recebeu na aldeia definira que minha casa seria atrás da casa dele, assim eu estaria afastado da aldeia e em ligação direta com ele. Este cacique foi e começou a construção da minha casa atrás da casa dele, já colocando até mesmo as madeiras de sustentação. Mas, no início do mês de maio, ele foi a um velório numa outra aldeia por dois dias. Neste meio tempo, a liderança da aldeia (há outros 2 caciques) tomou nova decisão, desmontando os alicerces da minha casa e a construindo no lugar em que ela está agora. O que eu poderia fazer? Gelei e esperei pelo pior.

Ao regressar do velório, eu e toda a comunidade ficamos ouvindo o seu choro alto por horas. Não quis acreditar que era por causa da história da casa, dentro de mim decidi que deveria ser pelo recente velório. Como saber? Não quis perguntar. Eu estava me sentindo como uma peça num tabuleiro de xadrez. Os jogadores eram todos parentes entre si e caciques, enquanto eu era apenas um ignorante peão estrangeiro…
Algumas semanas depois, ele me levou para a roça. Estávamos a sós e então ele falou sobre o assunto pela primeira vez após o incidente:

- Wanderley, eu não gostei do que fizeram – ele disse repentinamente de foice na mão.

- Eu também não – disse tentando encontrar algum vão para me solidarizar com sua tristeza e mostrar que eu não tinha tido nada com aquilo.

- A liderança tinha que respeitar minha decisão. Agora, você vai ficar longe de mim. Como eu vou te ajudar? Fica difícil saber o que você está precisando, fica difícil pra mim levar peixe pra você.

- Eles decidiram sem você, não foi?

- Mas você está feliz? – ele me perguntou, olhando bem nos meus olhos.

- Eu queria minha família comigo. O importante era isso.

- Agora sua família vem. A casa vai ser construída...

Saímos da mata e eu estava triste e alegre. Triste por saber que aquela experiência ímpar de morar na casa de um dos caciques iria acabar. Alegre por saber que seria a minha última entrada na aldeia sem minha família. Durante o mês de Junho, construímos minha casa e minha família entrou para morar comigo na aldeia em julho daquele ano.


Publicação autorizada pelo autor em 21/08/2012

2 comentários:

Ana Bailune disse...

Que interessante! Acho que viver inserido em uma cultura tão diferente da nossa deve ser muito, mas muito difícil. Eu acho que eu não conseguiria. Mas também tem suas belezas, pois ensina-nos a tolerância e a compreensão.

Wanderley Dantas disse...

Olá, Ana. Acabei de passar pelo teu blog e ver o lindo post sobre a "Cidadela". Saint-Exupéry é sublime. E uma das frases ali chamou-me a atenção, exatamente aquela sobre o crescimento. Creio que viver numa cultura totalmente oposta da nossa nos leva também a identificar o que Saint-Exupéry disse sobre o crescimento: eu descobri valores imutáveis e solidários à minha própria cultura. Valores que transcendem as especificidades e revelam algo estático - o humano (com todo "céu" e "inferno")- a imago Dei, que ainda persistente dentro de nós apesar de línguas, culturas e histórias tão díspares. Muito obrigado pelo comentário. Abraços!