quinta-feira, 5 de julho de 2012

O medo - Dias Índios XIII (A morte visita a aldeia – 2ª parte de 4) - Autor: Professor Wanderley Dantas

A dúvida era se deixaríamos nossas filhas acompanharem todas as cenas que ocorreriam dentro da casa do Cacique. Lembrei-me da morte do meu pai aos meus oito anos de idade. Minha mãe aproximou-se e perguntou se eu queria ir ao cemitério acompanhar o enterro, eu disse que não e fiquei em casa. "Takitakinalo, Hototó, vocês querem ver? As pessoas vão estar muito tristes, chorando...", dei a opção a elas como minha mãe um dia fez comigo. Elas quiseram estar presentes ali, assim entramos todos na casa.
 
Sentado, o filho de um dos Caciques segurava o corpo da criança nos braços, enquanto banhava e limpava com água aquela criancinha inerte; mulheres, homens e jovens se colocavam prostrados no chão ao redor do corpo e gritavam aquele choro arrancado do peito. Eles erguiam os braços, balançando as mãos na direção da criança. Os parentes vinham e abraçavam o pai, que chorava angustiadamente. Aproximei-me e o abracei também.
 
"Professor, o espírito da onça o pegou e o puxou para dentro das águas", explicou-me o Cacique. "Professor, por isso que quando a criança pede alguma coisa, a gente tem que dar. Se não der, o espírito da onça vê e corre para pegar a criança. Foi isso que aconteceu: ela acordou cedinho e pediu ao pai para beber caldo de mandioca e o pai não deu atenção, aí a criança saiu e a onça a puxou para dentro das águas"!
 
Naquela mesma semana, houve na escola uma aula em que um dos alunos perguntou o que era realidade. Tentei exemplificar dizendo que se uma onça entrasse ali na sala e nos desse uma mordida aquilo seria realidade. Mas, se estivéssemos dormindo e sonhássemos com uma onça nos mordendo, acordaríamos e veríamos que não havia sido realidade, já que nada havia acontecido. Péssimo exemplo numa cultura animista! Na mesma hora, o aluno me explicou que não era assim: “Se a onça aparece no sonho e morde você, cedo ou tarde você terá uma doença naquele mesmo lugar da mordida”, disse o aluno. Na realidade deles, tudo está inserido: o mundo espiritual e o físico, o que ocorre enquanto estamos acordados e enquanto estamos dormindo...
 
Quando jovem, o avô matara uma cobra, ainda antes da neta nascer. Anos depois, quando a neta já era uma criança, o espírito da cobra que havia sido morta mordeu em sonho essa menina. Ao crescer, já casada, ela ficou doente e o pai dela teve que fazer uma festa com fins de "aplacar" o espírito da cobra para que ela pudesse ser curada: era o espírito da cobra, que fora morta pelo avô quando este ainda era jovem e que estava agora se vingando em sua neta!
 
Muitas das interações sociais como, por exemplo, a troca de alimentos, que muitos interpretaram como sendo uma prova do mito do bom selvagem ou um exemplo de uma índole de liberalidade do povo, na verdade, é um pagamento que deve ser feito à comunidade que preparou os bijous e peixes para que o espírito gerador da doença pudesse ser aplacado. O espírito exige os alimentos e depois os come com a própria comunidade. O espírito que causava a doença agora recebe alimentos por ter curado a doença que ele mesmo estava causando. Mas, nesses rituais, se alguém se nega a participar dessas trocas de alimentos, o espírito ameaça vir com novas doenças. Estas mesmas relações de medo estão presentes no velório da criança. É o medo dos espíritos que subjaz às manifestações que vemos de toda dor, canto e choro no velório da criança e não, simplesmente, a dor da perda.
 
"Professor, agora os pajés estão fumando para ver se não houve feitiço contra a criança", disse-me o Cacique. Os pajés, o pai e o tio permaneceram por horas e horas fumando aqueles cigarros feitos de plantas alucinógenas. A casa se encheu daquela fumaça. Os mais jovens e fortes se colocavam por trás para segurar os que começavam a cair num transe xamânico. Eles agora começavam a ouvir os espíritos que revelariam a verdade para eles. "A fumaça é o alimento dos espíritos", dizem os pajés.




Prof. Wanderley Dantas


Publicação autorizada pelo autor

2 comentários:

Aleatoriamente disse...

Interessante...
Amei ler este texto.

Um beijinho Carlos

Carlos A. Lopes disse...

Então Fernanda, esse trabalho do Professor Wanderley Dantas é extraordinário e importantíssimo para nossa História. Um resgate valioso e certamente servirá para uma apreciável leitura e para trabalhos futuros. É de grande valia ler todos os capítulos já publicados neste blog ou no blog O Seringueiro.