A dúvida era se deixaríamos nossas filhas
acompanharem todas as cenas que ocorreriam dentro da casa do Cacique.
Lembrei-me da morte do meu pai aos meus oito anos de idade. Minha mãe
aproximou-se e perguntou se eu queria ir ao cemitério acompanhar o enterro, eu
disse que não e fiquei em casa. "Takitakinalo, Hototó, vocês querem ver?
As pessoas vão estar muito tristes, chorando...", dei a opção a elas como
minha mãe um dia fez comigo. Elas quiseram estar presentes ali, assim entramos
todos na casa.
Sentado, o filho de um dos Caciques segurava o
corpo da criança nos braços, enquanto banhava e limpava com água aquela
criancinha inerte; mulheres, homens e jovens se colocavam prostrados no chão ao
redor do corpo e gritavam aquele choro arrancado do peito. Eles erguiam os
braços, balançando as mãos na direção da criança. Os parentes vinham e
abraçavam o pai, que chorava angustiadamente. Aproximei-me e o abracei também.
"Professor, o espírito da onça o pegou e o
puxou para dentro das águas", explicou-me o Cacique. "Professor, por
isso que quando a criança pede alguma coisa, a gente tem que dar. Se não der, o
espírito da onça vê e corre para pegar a criança. Foi isso que aconteceu: ela
acordou cedinho e pediu ao pai para beber caldo de mandioca e o pai não deu atenção,
aí a criança saiu e a onça a puxou para dentro das águas"!
Naquela mesma semana, houve na escola uma aula em
que um dos alunos perguntou o que era realidade. Tentei exemplificar dizendo
que se uma onça entrasse ali na sala e nos desse uma mordida aquilo seria
realidade. Mas, se estivéssemos dormindo e sonhássemos com uma onça nos
mordendo, acordaríamos e veríamos que não havia sido realidade, já que nada
havia acontecido. Péssimo exemplo numa cultura animista! Na mesma hora, o aluno
me explicou que não era assim: “Se a onça aparece no sonho e morde você, cedo
ou tarde você terá uma doença naquele mesmo lugar da mordida”, disse o aluno.
Na realidade deles, tudo está inserido: o mundo espiritual e o físico, o que
ocorre enquanto estamos acordados e enquanto estamos dormindo...
Quando jovem, o avô matara uma cobra, ainda antes
da neta nascer. Anos depois, quando a neta já era uma criança, o espírito da
cobra que havia sido morta mordeu em sonho essa menina. Ao crescer, já casada,
ela ficou doente e o pai dela teve que fazer uma festa com fins de
"aplacar" o espírito da cobra para que ela pudesse ser curada: era o
espírito da cobra, que fora morta pelo avô quando este ainda era jovem e que
estava agora se vingando em sua neta!
Muitas das interações sociais como, por exemplo, a
troca de alimentos, que muitos interpretaram como sendo uma prova do mito do
bom selvagem ou um exemplo de uma índole de liberalidade do povo, na verdade, é
um pagamento que deve ser feito à comunidade que preparou os bijous e peixes
para que o espírito gerador da doença pudesse ser aplacado. O espírito exige os
alimentos e depois os come com a própria comunidade. O espírito que causava a
doença agora recebe alimentos por ter curado a doença que ele mesmo estava
causando. Mas, nesses rituais, se alguém se nega a participar dessas trocas de
alimentos, o espírito ameaça vir com novas doenças. Estas mesmas relações de
medo estão presentes no velório da criança. É o medo dos espíritos que subjaz
às manifestações que vemos de toda dor, canto e choro no velório da criança e
não, simplesmente, a dor da perda.
"Professor,
agora os pajés estão fumando para ver se não houve feitiço contra a
criança", disse-me o Cacique. Os pajés, o pai e o tio permaneceram por
horas e horas fumando aqueles cigarros feitos de plantas alucinógenas. A casa
se encheu daquela fumaça. Os mais jovens e fortes se colocavam por trás para
segurar os que começavam a cair num transe xamânico. Eles agora começavam a
ouvir os espíritos que revelariam a verdade para eles. "A fumaça é o
alimento dos espíritos", dizem os pajés.
Prof. Wanderley Dantas
Publicação autorizada pelo autor
2 comentários:
Interessante...
Amei ler este texto.
Um beijinho Carlos
Então Fernanda, esse trabalho do Professor Wanderley Dantas é extraordinário e importantíssimo para nossa História. Um resgate valioso e certamente servirá para uma apreciável leitura e para trabalhos futuros. É de grande valia ler todos os capítulos já publicados neste blog ou no blog O Seringueiro.
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