quarta-feira, 4 de julho de 2012

Egitsü - Dias Índios XIV (A morte visita a aldeia – 3ª de 4 partes) - Autor: Professor Wanderley Dantas

-Professor, você viu por que a criança morreu, não? O pai não quis dar o que ela pediu, então o espírito da onça foi lá e puxou ela para dentro da água. Se suas meninas pedirem alguma coisa para você, pode até ser porcaria, mas tem que dar para elas...
 
-Não - respondi, olhando fixamente para o Cacique – as minhas filhas têm uma proteção maior. Elas não vão ser pegas pelo espírito da onça. Elas são protegidas por um Espírito maior!
 
Dentro da casa, o filho do Cacique vai lavando a criança morta, enquanto retira suas roupas. Tudo agora girará em torno de ornamentar aquela criançinha com todos os aparatos de Cacique. Algumas mulheres estão confeccionando uma linda esteira, arcos e flechas pequeninos. O Cacique presente na aldeia é o líder da Cerimônia e começa a pintar o cabelo da criança com urucum. Depois, ele fura-lhe as orelhas. Coloca em seu pescoço o colar de caramujo usado pelos homens e o colar de garras de onça usado pelos Caciques. Fazem os braceletes e as caneleiras. Uma vez pronta, aquela pequena criança toda vestida de Cacique é colocada em uma rede que nunca foi usada por ninguém. Dentro dessa rede, junto com o corpinho da criança, colocam a esteira, os arcos e flechas.
 
O Cacique está apreensivo já que os outros líderes da aldeia se encontram de viagem e ele terá que tomar as decisões sozinho. O filho dele o ajuda escolhendo quem serão os quatro indígenas que abrirão a sepultura no centro da aldeia para o enterro do menino. É preciso pressa, pois já vai escurecer.
 
Uma vez escolhido os que irão abrir o buraco na terra, revezam-se naquele trabalho duro. Abre-se um buraco de quase dois metros de profundidade, mas com apenas um pouco mais de um metro de diâmetro. No fundo do buraco, tanto para o lado esquerdo, quanto para o direito, cavam pequenas câmaras. Numa delas deverá ficar a cabeça da criança e na outra os pés, de modo que apenas o tronco da criança seja visto por quem olha de fora do buraco.
 
Outra decisão que precisa ser tomada é se aquele velório se tornará a Grande Festa ou não. Na língua do meu povo, a Grande Festa é chamada de Egitsü, que significa o "canto dos mestres", já que daqui um ano os mestres de canto ficarão cantando a noite inteira. Aprendi aqui que essa Grande Festa não dura apenas um ou dois dias, que é quando turistas do mundo todo vêm para participar do que, na verdade, é apenas o encerramento do velório. Egitsücomeça na noite do enterro e por todo um ano (ou dois) segue através de uma série de festas até o dia do encerramento.
 
Com o corpo já na rede, carregam a criança e dão uma volta na casa do velório antes de se dirigirem ao centro da Aldeia. Os parentes vêm todos juntos ao lugar do enterro: em grupos de 4 e todos com suas cabeças cobertas por toalhas ou panos. Quando começam a descer o corpo da criança no buraco, os pajés quebram duas cabaças e lançam as sementes sobre o corpinho dela. Entretanto, ao colocarem o corpo da criança no buraco, ocorre a cena mais angustiante de todo o rito fúnebre. Um após o outro, os parentes descem dentro do buraco e deitam sobre o corpo para uma última despedida e só saem de dentro daquele buraco arrastados, pois ficam como mortos... Alguma coisa acontece lá dentro. Quando eles deitam sobre o corpo da criança, eles me contaram que os parentes levam "um choque" e, por isso, desmaiam lá dentro. É preciso, portanto, que a cada parente que desce – pai, mãe, avô, avó, tio, tia, irmão, etc – alguém depois desça junto e com a ajuda de outros indígenas fortes, retirem esses parentes de lá de dentro. Eles saem como se estivessem mortos e assim ficam desacordados por vários minutos em transe!
 
-O que é isso? Perguntei a um indígena que catava um pouco de terra, fazendo uma bola com ela nas suas mãos.
 
-Os pais agora pegam um pouco dessa terra que vai ser usada para enterrar a criança e guardamos para trazer sorte aos nossos filhos! Professor? - ele continuou - Eu nunca soube de uma família de brancos que tivesse assistido a esse enterro. Conversei com meu pai e ele disse que também nunca soube de uma família não-indigena presente nesse momento... Acho que vocês são os primeiros a verem isso aqui! As pessoas vêm à Grande Festa e acham que é só aquilo. Mas, hoje, já começou a Grande Festa.
 
O choro de toda a Aldeia não cessou nehum instante sequer naquelas 6 horas que já se seguiam do velório. Aquela parte do luto da Aldeia só terminaria 4 dias depois. A família da criança só sairá do luto daqui um ano no dia da grande Festa.



Prof. Wanderley Dantas
Publicação autorizada pelo autor

2 comentários:

Carlos Costa - Manaus/AM disse...

Só quem conhece muito bem os mitos e cultura dos índios pode relatar tão bem um fato curioso da cultura, com a contradição entre a cultura dos índios e dos caboclos. Parabéns

Wanderley Dantas disse...

Obrigado, querido Carlos Costa. Abraços!