Autor: Rangel Alves da Costa
E de repente, bastava se avistar a poeira subindo ainda
distante e a meninada começava a chorar, a gritar, a correr numa marcha só e se
metendo no fundo dos quintais, nos monturos, mas principalmente embaixo das
camas. Muitas delas se trancavam nos guarda-roupas e mais de vez, depois de
muita busca e preocupações, foram encontradas a sono solto lá dentro.
E tudo por causa do papa-figo. Quando se ouvia falar do
papa-figo até moça e rapaz se tremiam, pai de família e velho também, não
conseguindo esconder o temor diante daquela estranheza toda. E se alguém, mesmo
na zombaria, brincadeira de mau gosto, dissesse que o carro que poeirava
adiante na estrada só podia ser do papa-figo, então era um deus-nos-acuda.
Pelo nome, tão medonhamente pronunciado, logo se
imaginava o pior: pessoas estranhas, maldosas e violentas, os temidos
comunistas, chegando ali e arrancando com as mãos o fígado de quem fosse
encontrando pela frente. E para comer vorazmente cru, saciando com o vermelho
escorrendo do órgão do inocente sua sanha assassina, cruel.
Ora, pensar-se em comunistas era pensar em vermelho,
cor de sangue, por isso mesmo muito mais pavor assim que um brincalhão
alardeava que eles já estavam chegando com sua fome e sede. O povo, inocente
demais, matuto, pensando realmente que o comunismo era um bicho horrendo e
muitas vezes sem saber sequer o que era verdade ou mentira no que chegavam
espalhando ali, então se iludia com a propagada governista e dava no que dava.
Verdade é que o governo tinha a preocupação de fazer
chegar aos lugares mais inóspitos, nos sertões mais distantes, essa versão
assombrosa sobre o comunismo, que segundo os seus interlocutores poderia chegar
ao local através de pessoas disfarçadas de bons moços, mas que na verdade não
passavam de cruéis devoradores do fígado de inocentes. Daí o termo papa-figo,
no linguajar massapento.
Por isso mesmo que ao ouvir a simples menção de que os
papa-figo poderiam estar chegando, já bastava para o mundo desandar. Contudo,
nem todo mundo caía nessa lorota propagandística, pois dois velhos calejados do
lugar, um ex-marinheiro de todos os portos e um amargurado ferreiro aposentado,
comunistas convictos e de panfletagem, rebatiam os alarmes falsos dizendo que o
carrasco do povo é a sua ignorância.
Os dois vermelhos de coração e ideias, se achando no
direito de levantar suas bandeiras de luta e defender suas teses bolcheviques,
faziam de tudo para que a população deixasse de ser enganada, caísse na
realidade e tentasse ver quem era realmente o inimigo, quem eles deveriam
temer, que era o próprio governo com suas mazelas e propagação de tantas
injustiças sociais. Então começavam a explicar, dissuadir, discursar, mas não
havia jeito. Bastava um gaiato soprar que os papa-figo estavam por perto e cada
um já procurava sair de fininho.
Saía de fininho, se escondia, sumia, mas encontrando
outro mundo não menos inocente e fabulesco. De velho a novo, com poucas
exceções, todo mundo acreditava em botija enterrada e contendo riquezas de não
acabar mais. Na minha família, em outros tempos, já aconteceu um caso assim,
envolvendo essa riqueza doada do outro mundo, mas fruto de alguém da comunidade
que voltava do reino dos mortos para dizer a pessoa de sua confiança aonde havia
deixado uma fortuna enterrada.
Fico imaginando como uma pessoa que viveu o tempo todo
na pobreza, ou quando muito na farta subsistência do ter apenas pra não faltar,
iria enriquecer antes de morrer e somente depois, quando já não podia usufruir
de tanto ouro e dinheiro, voltaria ao reino dos vivos, balançar a rede do
adormecido e dizer que ali em tal lugar, embaixo de não sei o que, havia um
sinal assim e assim, e que bastava desenterrar para encontrar riqueza.
Mas tinha de fazer isso sozinho, sem antes ter avisado
a ninguém. Meia noite, e noite de pouca lua. E dizem que um parente meu
desenterrou uma bem desse jeito. E talvez tenha enterrado depois em outro lugar
e quando morreu esqueceu-se de voltar pra avisar onde estaria a salvação da
lavoura.
Às vezes fico pensando nisso tudo como uma grande brincadeira. Mas Deus me livre de dizer isso lá pra minha terra. Certa vez um cabra disse que não acreditava em caipora e mesmo já velho caçador tomou uma surra desse encantado que ficou entrevado muitos dias em cima de uma cama. E até hoje todo mundo comenta esse caso e jura pela mãe-d’água que foi verdade.
Autor: Rangel Alves
da Costa - Aracaju/SE
Poeta e
cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
Publicação
autorizadapelo autor
Um comentário:
Na minha região meu caro Rangel, Papa-fico era Papa-figo mesmo! Em particular, deixei de conhecer o Recife por diversas vezes pois temia os tais monstros que dilaceravam os corações. Excelente seu texto amigo, sabemos o quanto o misticismo faz parte da nossa cultura.
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