Entrei
na Casa dos Homens e todos já estavam ali: os chefes de família, os jovens, os
pajés, caciques e o filho do cacique. Este é um rapaz de uns 28 anos de idade e
que foi um dos responsáveis pela minha presença hoje na aldeia. É o único
indígena ali que saiu para estudar e não abandonou o desafio. Ficou sete anos
fora da aldeia e concluiu o 2º grau. Trabalhou na área de saúde indígena e,
agora, desde o final do ano passado, retornou à aldeia. Ele sempre insistiu com
seu pai que seus irmãos deveriam estudar, aproveitar a minha presença ali. Ele
foi um dos quatro indígenas da aldeia que me foi procurar em Brasília para
acertar a minha ida para a área. Assim, foi um presente neste mês retornar à
casa do cacique e ele estar ali também. Uma oportunidade maravilhosa, uma vez
que ele domina bem o português e se tornou uma espécie de “tradutor cultural”.
Um jovem inteligente, líder na aldeia, têm influência sobre meus alunos, enfim,
um presente de Deus para o meu trabalho. Mas o diálogo que ocorreu dentro da
Casa dos Homens é extremamente revelador e gostaria de chamar a sua atenção
para toda a significação do que está sendo dito, pois sei que se revelou uma
realidade que extrapola as palavras ditas ali.
-Bem, Professor, estamos aqui, a comunidade
reunida para você explicar sobre os computadores. Pode falar.
-Sei que os meus alunos mais velhos, quando vão à
cidade, mexem muito com o Orkut nas lojas de lá. Mas também sei que o
computador serve muito mais do que só para isso. Ele pode ser um apoio de
pesquisa na Escola. Ele pode abrir o mundo por meio da Internet também. Comigo
aqui na aldeia, ajudando vocês, podemos fazer cursos via-internet, além de
melhorarmos nossas aulas de matemática, português, história... O computador
também servirá para que vocês mesmos comecem a registrar e estudar a própria
língua, a comunidade precisa de indígenas linguistas, como também de indígenas
que entendam de turismo ecológico, indígenas advogados, indígenas professores,
indígenas enfermeiros, etc. O computador vem para ajudar a comunidade a
construir a realidade que vocês querem. Mas eu precisava que vocês se
comprometessem com a Escola dando a gasolina para o gerador durante as aulas
com os computadores. Eu entro com os computadores, vocês com a gasolina.
O filho do cacique traduziu tudo o que eu disse
para a língua, explicando para todos. Mas, de repente, bem no meio da sua
tradução, eu ouço uma palavra em português: “missionário”! Pronto, o que será
que ele estava dizendo para o povo? Por que ele estava me identificando com missionários?
O Governo proíbe a entrada de missionários na Região. Os que existiram foram
expulsos nos anos 70 e desde lá nunca mais se pode entrar. E sei que os
indígenas aprenderam dos antropólogos que missionário é o diabo.
-Professor – continuou o filho do cacique - estou
dizendo para eles que não precisam ter medo, não vai acontecer como lá em São
Gabriel da Cachoeira, que os missionários mandaram os índios pararem de dançar,
de festejar, colocaram roupas neles. E, agora, muitos filhos estão retornando
às tradições abandonadas por seus pais.
O filho do cacique estava se referindo ao trabalho
de catequese católico ocorrido em São Gabriel da Cachoeira (AM), mas o que me
chamou atenção foi a palavra medo. Por quê a aldeia estaria com“medo”. Por que
se referir a nossa presença dessa maneira? O que outros estavam dizendo para
eles sobre nós? Naquele momento delicado, com todos os homens da aldeia ao meu
redor, compreendi que a Sabedoria de Deus precisava me encharcar naquela hora,
principalmente porque aquele jovem nada falara diretamente sobre nós. Seria ali
a hora de nos associar com aquilo que eles pensam ser a própria encarnação do
mal na terra e, então, tentarmos desvencilhar essa imagem negativa? Se alguém
havia dito alguma coisa, orientado eles de alguma forma, a nossa conduta
positiva em relação a cultura durante o ano em que estivemos ali seria um
enorme ponto de interrogação na cabeça deles. Se éramos como os de São Gabriel
da Cachoeira, por que até agora nunca fizemos nada parecido, ao contrário, sempre
valorizamos o belo na cultura e nos reservamos o silêncio naquilo que é a
distorção do belo, transgressão da lei de Deus, como, por exemplo, os casos de
incesto e infanticídio. Enfim, não nos perguntaram nada.
Então orei. Avancei a posição do meu corpo sobre a
cadeira em que estava sentado. Olhei bem nos olhos do filho do cacique e
devolvi a moeda que ele havia me entregado.
-Querido, eu não vim aqui para fazer isso. O que
vocês fizerem daqui para frente, o que a comunidade fizer, será sempre uma
decisão da comunidade. Assim como tem coisas na minha cultura que eu não gosto,
que eu desaprovo e rejeito, vocês também vão descobrir que nem tudo é bom na
cultura não-índia e vocês precisam aprender a aceitar ou a rejeitar aquilo que
não é bom para vocês. Mas será sempre uma decisão da aldeia. E eu acredito que
a Escola está aqui para ajudá-los a perceber isso e ajudar vocês a aprender a
decidir sobre uma cultura que é estrangeira. Tem coisas na minha cultura que eu
não quero nem para mim, é claro que eu não quero para vocês também, mas a
decisão é da aldeia. Há coisas lindas na minha cultura e é claro que eu quero o
melhor disso para vocês também, mas, como eu disse, a escolha será sempre de
vocês.
Quando terminei de dizer isso, reclinei-me na
cadeira, fechei os olhos e agradeci ao Deus que estava ali presente comigo e
que enchera minha boca. Desde então, o filho do cacique vem se tornando um
grande amigo meu.
Autor: Professor Wanderley Dantas
http://o-seringueiro.blogspot.com.br/
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Publicação autorizada
pelo autor
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