terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A Guerra da Rua Velha - Autor: Augusto Sampaio Angelim

A Guerra da Rua Velha, no Recife

Amar mulheres, várias.
Amar cidades, só uma – o Recife
E assim mesmo com as suas pontes,
e os seus rios que cantam,
e seus jardins leves e sonâmbulos
e suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau
LEDO IVO.

Ouvi a notícia bem cedo, pelo rádio, como é meu costume e, logo, depois estava lá, a notícia estampada no Jornal do Commercio; “SEM-TETO PÕE FOGO EM PRÉDIO E ENFRENTA A PM. Confronto violento entre famílias sem-teto e o Batalhão de Choque da Polícia Militar (BP-Choque) resultou num incêndio e deixou um homem ferido, ontem na Rua Velha, bairro da Boa Vista, área central do Recife. O conflito começou por volta das 9h, quando três oficiais de justiça tentaram cumprir mandado de reintegração de posse do casarão de número 201, e só terminou às 15h. Cinco sem-teto acabaram presos...A polícia foi acionada para dar cobertura aos três oficiais, mas foi recebida a pedradas pelos manifestantes que, segundo a polícia, atearam fogo no casarão...A tensão aumentou com a chegada de 70 homens do BPChoque. Os integrantes do MLRP ameaçaram a polícia, mostrando bombas feitas com garrafas cheias de gasolina (coquetel molotov). Também gritavam palavras de ordem, como “queremos pão e teto” e “resistir até vencer”... Por volta das 13h30, o comandante do BPChoque, tenente-coronel Luiz Meira, ordenou a entrada da tropa no casarão. Os manifestantes jogaram bombas contra os policiais, que revidaram atirando bombas de efeito moral, balas de borracha e gás lacrimogênio, transformando a Rua Velha em um cenário de guerra...”.

Faz tempo que não passo na Rua Velha, mas vivi ali no final dos anos 70.

A rua, propriamente dita, inicia-se ao final da chamada PONTE VELHA, toda em ferro fundido, uma referência na paisagem do Recife sobre o leito do Capibaribe. É uma das ruas mais antigas do Recife e desemboca no Pátio da Igreja de Santa Cruz, que foi construída entre 1711 e 1716. Como se vê, a Rua Velha é velha mesmo, porém nunca tinha passado por tanta agitação, mesmo devendo ter sido palco das inúmeras revoltas eclodidas no Pernambuco da época colonial e do Império.


É uma rua relativamente pequena. Eu fiquei hospedado, durante mais de ano, no casarão de número 409, na esquina do pátio da Igreja de Santa Cruz, o último da rua. Era uma pensão habitada por gente do interior, na maioria estudantes do sertão e de alguns Estados vizinhos, notadamente do Piauí e da Paraíba. O dono da pensão era casado com uma agregada da casa da minha avó paterna, uma tia. Tia Toinha. Além das quatros paredes principais, todo o resto do casarão, assim como a maioria das casas daquela rua, era de madeira e rangia com o peso das coisas, das pessoas e, principalmente, do tempo. Na semana, a rua era um movimento intenso de gentes e carros, mas aos domingos, dava até para jogar bola no seu estreito leito. Era gostoso caminhar à noite e nos finais de semana. Na frente da pensão, chamada de Hotel Navio (porque era inundada em dias de chuva), havia o bar de um português; na travessa do Veras tinha umas lojas de uns judeus, onde se negociava de tudo. Na metade da rua, tinha um casarão em que moravam duas meninas de olhos bonitos e era bom passar e vê-las, vez por outra, nas janelas, aos domingos.

Desde àquele tempo, a Rua Velha ocupa um lugar especial na minha memória. Recentemente, descobri até uma página do ORKUT intitulada “EU CONHEÇO ALGUÉM DA RUA VELHA” e fiz dela uma de minhas comunidades. E, hoje, essa notícia triste. A matéria, de duas páginas do jornal, é longa e traz cenas pungentes: mulheres grávidas (aliás, em todas as invasões e desocupações sempre aparecem desesperadas mulheres grávidas), o casarão pegando fogo, carros com os vidros quebrados. Uma verdadeira praça de guerra. A Rua Velha merece coisa melhor, entretanto é retrato de uma parte do Recife (e de outras grandes Cidades brasileiras) decadente, que parece não se amoldar ao tempo atual e não consegue guardar sua mansidão e tranqüilidade de velha rua de uma Cidade que não existe mais.


Autor: Augusto N Sampaio Angelim - São Bento do Una/PE

Página do autor: http://recantodasletras.com.br/autor.php?id=29657
Publicação autorizada por escrito pelo autor da obra

Um comentário:

Augusto Sampaio disse...

Meu caro Carlos Lopes, já que publicastes esta crônica, recomenda que leias o conto "Os últimos", na minha escrivaninha (recantodasletras) que ambientei no Distrito de Feliciano, aí pertinho de sua querida Custódia. Um abraço.
Augusto