terça-feira, 13 de maio de 2014

O menino doente, a mãe do menino e o Padre Santo

Autor: Tadeu de Araujo

A febre atacou novamente o menino. Ela vinha de maneira intermitente de 24 em 24 horas. Era a febre terçã. Ele estava anêmico. Sentia calafrios.
—Mãe, vou sarar não, mãe!!! De nada tão valendo os chás que a senhora me dá nem os remédios do farmacêutico do Leandro Ferreira. Eu só faço piorar... Será que vou morrer, mãezinha?
A mãe deixou a lida da casa à beira do fogão de barro, na cozinha. Entrou no quartinho de chão batido do casebre de pau-a-pique. Seus negros olhos humildes, de tristeza sertaneja baixaram sobre o menino doente. Sentou-se no tosco catre, sobre o qual repousava o filho enfermo, entre pobres enxergas, mas que brilhavam de limpeza. Tomou, entre as suas mãos calejadas, as mãozinhas afogueadas de febre do pequenino.
Não disse nada, porém seu coração, nublado como aquele dia chuvoso, chorava de compaixão.
­— E se o Padre Libério viesse aqui me benzer, eu haveria de ficar bom, não é, mãezinha?
—Ah! filho, Padre Libério é muito ocupado. Tem muitas missas pra dizer... Batizados ... Casamentos...Terços pra rezar...Confissões pra ouvir... Não se preocupa com gente tão longe e tão esquecida como a gente, não!
Levar o menino no Leandro não tinha jeito. O marido, há três semanas, encontrava-se fora. Distante. Pra lá do São Francisco, aquele rio mais grandão que o Lambari, que corria a pouca distância de sua morada. Ele fora além de Dores do Indaiá para a “panha do café”, noutra fazenda do patrão, na Serra da Saudade.
— Mas mãe, tenta!Pede alguém pra ir e chamar ele, o Padre. Pode ser que ele venha. Ele é tão milagroso...
—Filhinho, longa é a estrada até Leandro Ferreira e curta, a piedade das pessoas!Quem irá lá por nós, ainda com tanta chuva e o Lambari tão cheio?
Era sábado. A noite caía. E a chuva de uma semana não dava folga. Descia sem cessar sobre o sapé que cobria o ranchinho, levantado na barranca do riacho. As árvores respingavam gotas sobre o chão enojado de tanta água e nos troncos umedecidos. Os pássaros, tristes, encolhiam-se encorujados entre as galhadas verdes. A ponte de pranchões rústicos, que ligava a morada à estrada de cavaleiros e de carros de boi, de Bom Despacho a Leandro Ferreira, sumia-se semiencoberta pelas enchentes.    
Mais abaixo, o Lambari transbordava sobre as areias brancas de suas margens.
O menino continuou sua prosa mansa, com a voz sumida por causa da enfermidade:
— Mãe, o Padre Libério, tempos atrás, na fazenda do Coronel Jacinto Lopes, rezou para a mulher dele que estava perrengue, de cama há mais de mês e ela se levantou. Sarou, saradinha!
— Coronel Jacinto, meu filho, é rico. Tem estrada de automóvel que levou o padre até lá...
—E na fazenda do Coronel Antônio Pedro... lá não tem estrada de automóvel . E ele foi lá benzer as cobras que mordiam e matavam as vacas dele. E desde então não morreu nem mais um bezerrinho picado de cobra nos pastos...
—Filho, Coronel Antônio Pedro tem cavalos bonitos. Selas e silhões prateados, pelegos coloridos e macios para o Padre viajar bem montado, no conforto que um padre merece. E nós o que temos a oferecer?
A criança ardia em febre. — Tenho frio, mãe, muito frio!
Ela o aconchegou maternalmente nas cobertas humildes. Ele virou-se de lado e adormeceu. Apesar da febre persistente, seu semblante não era de agitação ou de dor. Na sua boquinha vermelha e maltratada pela alta temperatura corporal, aflorava um meio sorriso, talvez de esperança de que o Padre Libério viesse curá-lo. Talvez embalasse seu sono febril uma doce visão: pela porta aberta do casebre, ele ouviria o lento tropel de um idoso, que entraria em seu pequenino quarto, sorrisse para ele e dissesse:
—Aqui estou, vim pra te curar com a graça de Deus, Nosso Senhor!
A mãe, na cozinha, já com a lamparina acesa, pois a noite caíra de vez, talvez sonhasse a mesma cena impossível.
A noite foi de vigília para a pobre camponesa. Temia pela vida do filho. Aquele único que Deus lhe dera, agora mal entrado nos onze anos de idade... Mas já companheiro do pai para capinar roça, plantar feijão e colher milho, nas margens do Rio Lambari, em terras do patrão do qual a família era agregada, há muitos anos.
Passou o escuro da noite e a chuva grossa converteu-se em garoa fina. O galo cantou. Pássaros pipilavam ansiosos no arvoredo. O domingo amanhecia numa aurora cinza, lutando para clarear o dia. O menino, de olhos abertos, acordara da noite de sofrimento, mal dormida. A mãe cochilava, em vigília, como soem fazer todas as mães ao lado do filho doente.
De repente, ouviram um “conversê” sussurrado na estrada da banda de lá do córrego. Depois passos chapinhados de um cavalo na ponte encharcada, seguindo pelo trilho enlameado que dava na porta da choupana.
Mãe e filho, curiosos, esperaram. Àquela hora, seriam notícias ruins do marido e pai que se encontrava tão longe?
Pôde-se então perceber o apear lento de um cavaleiro... A batida na porta.
—Ô de casa!
O doentinho sentou-se na cama. A mulher levantou-se de um pulo. Arrumou-se rápido. Abriu a porta.
—Dê-licença, vosmecê!
Ela arredou-se de lado. Todo o seu corpo transcendia-se em êxtase como se estivesse diante de uma visão celestial.
O homem muito alto e magro, na sua batina cinzenta, abaixou-se pra não bater a cabeça na porta baixinha da entrada da casa. Entrou no quarto onde o menino já estava de pé, junto ao seu leito de enfermo. Então aquele respeitável ancião sussurrou num tom santo e suave:
—Aqui estou, vim te curar com a graça de Deus, Nosso Senhor, se assim for da vontade d’Ele...
Aspergiu-lhe água benta. Benzeu-o. Rezou bonitas preces em sussurro, segurando o crucifixo que trazia no peito ou tocando-lhe a cabeça e as faces com as mãos compridas e enrugadas.
Terminando, saiu do quarto onde deixou o pequenino reconfortado e feliz. Conversou com a mãe.
Não podia esperar pelo café. O sacristão e o peão do Sô Bem do Pacífico- que lhe fora levar dois cavalos no Leandro, um para ele, outro para o sacristão, esperavam da banda de lá da ponte. Tinha de chegar na Capela dos do Campo Redondo para celebrar uma missa às sete horas pros fazendeiros e trabalhadores da região.
Só um fato instigava aquela mulher e ela não ousou perguntar-lhe: como o Padre soubera que naquele lar havia alguém precisando de suas orações, se nem os vizinhos, tão poucos e tão distantes, nem ninguém, a não ser ela mesma e o filho sabiam do estado de saúde do menino?
Da soleira da porta, acompanhou até onde seus olhos puderam alcançar os três cavaleiros trotando na estrada rumo à Capelinha do Campo Redondo. Todo o seu ser vibrava de alegria e gratidão, como se mil sinos festivos repicassem dentro de sua alma e de sua humilde casa, nos arvoredos e nas campinas.
Três dias depois da visita do Padre Libério, o menino, inteiramente recuperado,  já retomava as lidas do dia a dia — com as graças de Deus, Nosso Senhor e  do Santo Padre Libério — substituindo o pai que ainda não retornara dos cafezais, na Serra da Saudade , além do Rio São Francisco, muito pra lá de Dores do Indaiá.

Autor: Tadeu de Araujo - Bom Despacho/MG

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