sexta-feira, 23 de maio de 2014

Texto: 11 (do concurso) - Morgana, minha gata

Lembro-me daquela madrugada em que escrevia o meu primeiro conto.  Queria muito que ele atingisse rápido o coração do leitor.  Assim como a aranha, quando constrói a sua teia, à espera da sua presa, eu desejava do leitor a captura  da sua alma. A cada cena descrita, a cada desfecho revelado, explorar o elemento surpresa, dar-lhe uma conclusão inesperada, para tirar-lhe o fôlego.
Um movimento brusco de Morgana, minha gata,  chamou minha atenção. Desde que pulara o muro do quintal e se instalara na minha vida, Morgana, me fez  rememorar a magia e o mistério que sempre envolveram a simbologia do gato.
Na infância conheci o Gato de Botas que, com sua inteligência arguta, salvou o jovempríncipe da miséria e da injustiça e cultivou em mim a imaginação e o lúdico tão próprios à escrita.
Lembrei-me também de que o gato acompanha o homem ao longo da sua trajetória no mundo, desde a pré-história. Os egípcios o adoravam como divindade, para os romanos representava a liberdade. Para os gregos o gato era  símbolo de amor e feminilidade.
Recentemente, li numa lenda hebraica que  o gato nasceu do sopro do leão, um pedido de Noé a Deus, para que impedisse  que os ratos comessem as provisões guardadas na Arca.
Durante a inquisição, as mulheres vistas em companhia de um gato eram acusadas de bruxaria e queimadas vivas em fogueiras enormes. E o  nome Morgana? Nome de fada, bruxa e feiticeira.
Morgana era também o nome da gata da minha melhor amiga, Ana, que morreu precocemente. Por isso, eu quis homenageá-la. Eu morria de inveja quando a Morgana dela, enroscava-se em suas pernas e deitava-se por cima de seus pés. Uma lembrança linda e dolorosa.
Desde então,  acordo todas as manhãs, imaginando o momento em que, sendo a minha, Morgana se esparramará em cima dos meus pés, feito um novelo de linha  quando se desenrola nas patas dos filhotes, brincantes e alegres, como deverão ser os dela.
Independente, inacessível, inoportuno, caviloso,  elegante, inteligente, pleno de si e ludibriador da morte, pelo menos em sete vidas. Refletia eu  sobre os múltiplos atributos do gato, quando Morgana pulou da poltrona e postou-se na mesa ao lado do computador.
Ela nunca teve  um comportamento como aquele, e isso me deixou  bastante preocupada. Ela sempre respeitou o meu ritual e o altar sagrado, em que havia se tornado a minha escrivaninha, onde eu  acomodara o meu computador, transformando-o numa espécie de deus e meu orixá, depois que comecei a escrever.
Incitada pela precisão do movimento e o inesperado daquele fato, interroguei-me sobre o significado da cena que presenciava. Antes que eu começasse a refletir, Morgana começou a dar novos sinais de inquietação e levantou-se rapidamente. A sua agilidade provocou em mim um pensamento rápido e superficial, para o qual atentaria somente mais tarde. Interpretei que sua agitação se devia ao fato de que ratos costumavam, há algum tempo, correr pela calha, do lado de fora do escritório.
Em silêncio, tentei identificar qualquer barulho que pudesse confirmar a minha hipótese, mas  nada. Nenhum movimento do lado de fora da casa. Voltei minha atenção para dentro do escritório e, à medida que caminhava à procura de algo que pudesse ter chamado a atenção de Morgana, deparei-me, num susto, com a gata deitada sobreteclado. Percebi seus  olhos fixos na tela.
Meu Deus! Tinha nos olhos um brilho intenso e as pupilas enormes arredondadas. Até então, eu via Morgana apenas uma gata típica:  manhosa e arisca com pelos pretos comuns, curtos e lisos. Naquele momento, o brilho nos olhos, talvez fosse um sinal! Um mau agouro, eu pressentia.
Aquela cena tensa, inesperada e silenciosa me deixara arrepiada. Devagarzinho, fui me aproximando do computador com o intuito de retirar Morgana de cima do teclado.
Ao mesmo tempo em que meu coração batia acelerado, minha garganta tornava-secada vez mais seca, como a caatinga rala no nordeste. Meus pensamentos iam de um lado para o outro. Eu buscava o equilíbrio no plano das ideias, como o  pescador, quando de pé, numa canoa, em plena maré alta, luta para  manter a proa na direção certa.
Havia algo errado com o que eu escrevia. Morgana continuava a olhar fixamente para a tela. Gata danada!
Apavorava-me  a ideia de que o meu primeiro conto não fosse apreciado.
Instintivamente fechei os olhos e esperei alguns minutos...
Mais calma, peguei a gata  no colo e sentei-me em frente ao computador.
Hesitei um pouco mais ...
No meu íntimo, eu buscava explicações, as mais diversas. Num sobressalto, refleti novamente sobre o simbolismo do gato. Perspicácia. Longevidade. Beleza. Insolência.  E... mau agouro, completei apavorada.
Repentinamente, abri os olhos e me deparei com a tela em branco. Minha nossa!  Gata travessa! Deletou a minha história!  Exclamei horrorizada.
Por onde começar? O que manter? O que retirar? O que acrescentar? Gritei desesperada! Desnorteada, prostei-me  em frente ao meu altar e, numa súplica fervorosa e primitiva, ao meu deus, meu orixá, implorei que trouxesse o meu conto de volta. Em troca eu lhe faria uma oferenda.
Esperançosa, olhei novamente para a tela  e, milagrosamente, vi que o conto estava intacto.
Não pensei duas vezes. Levantei-me calmamente com a gata nos braços, fui até a cozinha, abri a gaveta do armário, escolhi uma faca bem afiada e,  num movimento rápido e preciso, cortei -lhe a garganta. Ao meu sacro ofício, sacrifiquei Morgana.  
Aliviada com o término do conto, desliguei o computador e olhei com admiração e gratidão para Morgana. Minha gata feiticeira! Minha gata leal e protetora!  Exultei!
Alheia ao que eu imaginara, deitada na poltrona, mais uma vez, ela  me acompanhara, pelas trilhas tortuosas e muitas vezes, ásperas da arte de escrever...
Ao lembrar daquela madrugada penso que Drumond tinha razão quando escreveu sobre o gato. Pleno de mundo e um pouco de casa, vive  ora em cima do telhado, ora na poltrona. Astuto e preciso, a nos guardar e a nos provocar em sua liberdade e rebeldia. Símbolo de conhecimento e ímpeto para a cultura.
O salto de Morgana para cima do teclado e o olhar fixo na tela foi também um sinal de que, para escrever é preciso romper, abrir fissuras no texto. Mirar o céu  dos sonhos e das quimeras. Dormir ao relento e navegar na tempestade. Soltar as amarras, virar e desvirar o léxico. Desfiar velhos sentidos. Desenovelar os novos. Saltar os muros da língua e sobreviver a cada texto e palavra, no mínimo, em sete fôlegos. 

3 comentários:

Anônimo disse...

(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação mostram claramente a habilidade do autor ou da autora na escrita, um ou outro erro de digitação detectado, apenas detalhes. Elementos da narrativa tais como começo, trama e personagens, geração do clímax e desfecho, e a exploração de certos efeitos, demonstram a habilidade do autor ou da autora na escrita de narrativas do gênero conto, e criatividade também. Creio que o conjunto seria responsável pelo envolvimento intenso do leitor durante a leitura. Parece estar perfeitamente dentro da proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Avaliação pessoal: entre muito bom e ótimo. Parabéns à autora ou ao autor e boa sorte! (Torquato Moreno)

Anônimo disse...

Conto instigante, entre o mistério e o inusitado, um convite a uma boa leitura. Título simples, perfeito para a história. Parabéns a quem o escreveu. Marina Alves.

Alberto Vasconcelos disse...

Texto bom. Leitura agradável com imagens literárias bem definidas e dentro dos parâmetros do concurso. Há deslises gramaticais facilmente contornáveis. Parabéns a quem o produziu.