sexta-feira, 16 de maio de 2014

Diadorim: meu jacarezin de parede

Autora: Denise Coimbra

Deitada, a pensar... Tenho que me levantar e trabalhar. O trabalho dignifica o homem. É preciso otimizar o tempo. Tempo é dinheiro. Cabeça e mãos vazias, oficina do Diabo. Inúmeras elucubrações filosóficas ou pragmáticas pipocam.
Retruco ensimesmada. Se Deus criou e organizou o mundo em sete dias. Eu bem que poderia demorar um pouco mais! Procastinação. Tinha lido esta palavra no muro do vizinho. Não entendi bulhufas. E agora, ela aparece, do nada. Associação livre. Posso transformá-la numa questão psicanalítica, até porque a posição em que eu estou já é bastante similar e promissora. Lembrei-me de Bagé, o analista. Desatei a rir...
De repente! e rápido, uma lagartixa a correr pelo teto. Assustada e curiosa, eu a sigo com os olhos. Antes uma interrogação: Como pode ela correr pelo teto sem cair?
Se o prefeito da minha cidade fizesse a mesma pergunta ele certamente responderia: o que faz a lagartixa desafiar a lei da gravidade são as mesmas forças que atuam em ligações químicas ou as chamadas forças de Van der Waals. Neste caso, as moléculas trocam elétrons e se atraem. Para não me estender muito e perder a trajetória da lagartixa, vamos nos contentar com essa explicação, ainda que pouco desenvolvida.
Sento-me na beirada da cama. Meus olhos se deparam com a lagartixa paradinha, paradinha, à espreita, pertinho de uma mosca também pousada no teto. Pisquei os olhos. Ela engoliu a mosca.
Num jogo de cartas ainda vai, mas no jogo da vida, comer moscas, ficar às moscas. E eu? Tô fazendo o quê? Penso de novo, no analista, não mais o de Bagé...
Não vou me estender nesse ponto. Filosofar em duas páginas e em português não é nada fácil embora não seja impossível, contraponho Heidegger, como a canção de Caetano Veloso.
Onde eu estava mesmo?
Em frente ao guarda-roupa. Ela, na parede lateral. Levanto. Ando devagar. Ela também. Não pode ser, igual a mim? Ela está com preguiça? Rio da imbecilidade que pensei.
Começo a retirar as roupas da gaveta para me trocar.  Algo, no fundo dela,  
me chama a atenção. A impressão de uma asa. A certeza da cor marrom. O movimento rápido das antenas. Meus olhos arregalados. Meus pelos eriçados. Meu estômago embrulhado.
Num lampejo, amaldiçôo os navios negreiros, também pelo motivo de tê-la transportado da África para cá.  Recuo enojada. A minha mão na boca segura o vômito. A boca da lagartixa engole a. Aquela do Kafka!
Entro em transe. A lagartixa salva-me da metamorfose, de não ser moída pela engrenagem dos Tempos Modernos. Cartão de ponto, crachá, avaliação, desempenho, performance, resultados, stakeholders, stress, assédio, licença, afastamento, suicídio.
Como posso não admira-la?  Além de andar pelo teto de cabeça para baixo, ela come barata! Aquela que a Clarice Lispector ofereceu à GH, com paixão! E que nos faz  perguntar: Quem somos? Que nos faz entrar em contato com o nosso vazio, a nossa solidão e a constatação da nossa fragilidade humana. Ao mesmo tempo...
...Diferente da lagartixa, alheia à sua condição, toda vez que come a barata, posso não ser engolida. Pela vida. Pelo trabalho. Há que se retirar de ambos, o belo, o sentido da criação que emana do coração. Ao contrário daquela, posso escolher um novo caminho a qualquer tempo, mesmo sendo esse, implacável, inexorável.
No entorno do vazio, o oleiro molda o vaso, na fenda da terra o jardineiro planta a semente, no cavo do ventre a criança é gestada e a vida inicia um novo ciclo. Sempre. Eternamente. Até quando?
Ainda angustiada, reflito: Como são misteriosos os caminhos da vida e da literatura. A lagartixa comendo a barata me fez pensar também em Riobaldo e sua travessia.  Aquela em que o Rosa embarcou junto.
A minha travessia pede coragem para não continuar a viver como se fosse obrigada.. Ócio criativo, ao invés do dócil corpo ativo, esse que o Foucault nos libertou em pensamento
A minha travessia pede que eu embarque sem saber o que me espera na outra margem.
         A minha travessia pede um pouco de travessura e muitas alegrias. 
Uma delas é ser cronista desse diário e apresentar-lhes  a lagartixa que me despertou e me fez descobrir esta e outras possibilidades. Ei-la!
        - Diadorim, meu jacarezin de parede. 

Autor: Denise Coimbra - Bom Despacho/MG

6 comentários:

willes disse...

Muito bom o conto. Parabéns!

Maria Mineira disse...

Um conto excelente! Me fez viajar nas lembranças da boa literatura, ao citar grandes obras e terminou lindamente batizando o bichim com o nome de Diadorim, que juntamente com Riobaldo são os meus personagens preferidos de todos os tempos. Parabéns ao (a) autor(a)!

Anônimo disse...

Diadorim e Riobaldo sempre imbatíveis. A Lagartixinha deu seu recado sem nem a gente sentir. Fino trato com as palavras e com as ideias.Muito bom! Marina Alves.

Anônimo disse...

(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação mostram que o autor ou a autora tem domínio dos mecanismos da língua e consegue transmitir idéias de modo compreensível e criativo – se há erros de linguagem, não detectei durante a leitura. Trata-se de uma crônica cuja leitura me envolveu bastante e apresenta um desfecho coerente com o relato da narradora-cronista. E por se tratar de crônica, falar de enredo creio que não se aplica, dado que o texto tem uma estrutura muito mais de reflexão do que de relato. É um texto muito rico. Embora possa ser interpretada como uma homenagem a um suposto animal de estimação, não arrisco dizer em que grau exatamente este texto se aproximaria da proposta do concurso (considerando o requisito de focar mais na afetividade). Fica a minha dúvida neste quesito. Avaliação pessoal: um texto muito bom, parabéns à autora ou ao autor. (Torquato Moreno).

Alberto Vasconcelos disse...

Texto muito bom, leitura agradável que faz com que o leitor embarque na análise psicológica da vida profissional. Parabéns a quem o produziu.

Anônimo disse...

Uma história bem tramada e uma narrativa intrigante. Parabéns.