Autora: Denise Coimbra
Retruco ensimesmada. Se Deus criou e
organizou o mundo em sete dias. Eu bem que poderia demorar um pouco mais! Procastinação.
Tinha lido esta palavra no muro do vizinho. Não entendi bulhufas. E agora, ela aparece,
do nada. Associação livre. Posso transformá-la numa questão psicanalítica, até
porque a posição em que eu estou já é bastante similar e promissora. Lembrei-me
de Bagé, o analista. Desatei a rir...
De repente! e rápido,
uma lagartixa a correr pelo teto. Assustada e curiosa, eu a sigo com os olhos.
Antes uma interrogação: Como pode ela correr pelo teto sem cair?
Se o prefeito da minha cidade fizesse
a mesma pergunta ele certamente responderia: o que faz a lagartixa desafiar a
lei da gravidade são as mesmas forças que atuam em ligações químicas ou as
chamadas forças de Van der Waals. Neste caso, as moléculas trocam elétrons e se
atraem. Para não me estender muito e perder a trajetória da lagartixa, vamos
nos contentar com essa explicação, ainda que pouco desenvolvida.
Sento-me na beirada da
cama. Meus olhos se deparam com a lagartixa paradinha, paradinha, à espreita,
pertinho de uma mosca também pousada no teto. Pisquei os olhos. Ela engoliu a
mosca.
Num jogo de cartas ainda
vai, mas no jogo da vida, comer moscas, ficar às moscas. E eu? Tô fazendo o
quê? Penso de novo, no analista, não mais o de Bagé...
Não vou me estender nesse ponto. Filosofar
em duas páginas e em português não é nada fácil embora não seja impossível, contraponho
Heidegger, como a canção de Caetano Veloso.
Onde eu estava mesmo?
Em frente ao guarda-roupa. Ela, na
parede lateral. Levanto. Ando devagar. Ela também. Não pode ser, igual a mim? Ela
está com preguiça? Rio da imbecilidade que pensei.
Começo a retirar as roupas
da gaveta para me trocar. Algo, no fundo
dela,
me chama a atenção. A impressão de
uma asa. A certeza da cor marrom. O movimento rápido das antenas. Meus olhos
arregalados. Meus pelos eriçados. Meu estômago embrulhado.
Num lampejo, amaldiçôo os navios
negreiros, também pelo motivo de tê-la transportado da África para cá. Recuo enojada. A minha mão na boca segura o
vômito. A boca da lagartixa engole a. Aquela do Kafka!
Entro em transe. A
lagartixa salva-me da metamorfose, de não ser moída pela engrenagem dos Tempos
Modernos. Cartão de ponto, crachá, avaliação, desempenho, performance,
resultados, stakeholders, stress, assédio, licença, afastamento, suicídio.
Como posso não
admira-la? Além de andar pelo teto de
cabeça para baixo, ela come barata!
Aquela que a Clarice Lispector ofereceu à GH, com paixão! E que nos faz perguntar: Quem somos? Que nos faz entrar em
contato com o nosso vazio, a nossa solidão e a constatação da nossa fragilidade
humana. Ao mesmo tempo...
...Diferente da
lagartixa, alheia à sua condição, toda vez que come a barata, posso não ser engolida. Pela vida.
Pelo trabalho. Há que se retirar de ambos, o belo, o sentido da criação que
emana do coração. Ao contrário daquela, posso escolher um novo caminho a
qualquer tempo, mesmo sendo esse, implacável, inexorável.
No entorno do vazio, o
oleiro molda o vaso, na fenda da terra o jardineiro planta a semente, no cavo
do ventre a criança é gestada e a vida inicia um novo ciclo. Sempre.
Eternamente. Até quando?
Ainda angustiada,
reflito: Como são misteriosos os caminhos da vida e da literatura. A lagartixa
comendo a barata me fez
pensar também em Riobaldo e sua travessia.
Aquela em que o Rosa embarcou junto.
A minha travessia pede coragem
para não continuar a viver como se fosse obrigada.. Ócio criativo, ao invés do
dócil corpo ativo, esse que o Foucault nos libertou em pensamento
A minha travessia pede
que eu embarque sem saber o que me espera na outra margem.
A
minha travessia pede um pouco de travessura e muitas alegrias.
Uma delas é ser cronista
desse diário e apresentar-lhes a lagartixa
que me despertou e me fez descobrir esta e outras possibilidades. Ei-la!
- Diadorim, meu
jacarezin de parede.
Autor: Denise Coimbra - Bom Despacho/MG
Autor: Denise Coimbra - Bom Despacho/MG
6 comentários:
Muito bom o conto. Parabéns!
Um conto excelente! Me fez viajar nas lembranças da boa literatura, ao citar grandes obras e terminou lindamente batizando o bichim com o nome de Diadorim, que juntamente com Riobaldo são os meus personagens preferidos de todos os tempos. Parabéns ao (a) autor(a)!
Diadorim e Riobaldo sempre imbatíveis. A Lagartixinha deu seu recado sem nem a gente sentir. Fino trato com as palavras e com as ideias.Muito bom! Marina Alves.
(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação mostram que o autor ou a autora tem domínio dos mecanismos da língua e consegue transmitir idéias de modo compreensível e criativo – se há erros de linguagem, não detectei durante a leitura. Trata-se de uma crônica cuja leitura me envolveu bastante e apresenta um desfecho coerente com o relato da narradora-cronista. E por se tratar de crônica, falar de enredo creio que não se aplica, dado que o texto tem uma estrutura muito mais de reflexão do que de relato. É um texto muito rico. Embora possa ser interpretada como uma homenagem a um suposto animal de estimação, não arrisco dizer em que grau exatamente este texto se aproximaria da proposta do concurso (considerando o requisito de focar mais na afetividade). Fica a minha dúvida neste quesito. Avaliação pessoal: um texto muito bom, parabéns à autora ou ao autor. (Torquato Moreno).
Texto muito bom, leitura agradável que faz com que o leitor embarque na análise psicológica da vida profissional. Parabéns a quem o produziu.
Uma história bem tramada e uma narrativa intrigante. Parabéns.
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