Um homem vendia churrasco numa barraca da Praça Central, perto da Estação do Metrô. Tinha a maior consideração por ele apesar de nunca ter comprado nenhum churrasco. Passava por ele de manhã quando ia para o trabalho e assim que chegava de tardezinha estava ele lá ainda. Parecia que já fazia parte do chão fincado como uma estátua. Eu cumprimentava-o cordialmente.
Dizem que fazia churrasco de gato. Não é comum no
Brasil churrasco de gato. Esses felinos invadiram de tal maneira os grandes centros
urbanos que só resta fazer deles alguns petiscos. Não condeno quem os faça,
tampouco quem os compre. É uma questão de gosto. Não gosto.
Eu não via os olhos do vendedor. Estava sempre de
cabeça baixa. Levantava um pouquinho para entregar o espeto e receber o
pagamento. Ele parecia um homem bom apesar de saber que enganava seus fregueses
omitindo o tipo de carne que estava oferecendo. Havia gente que gostasse. Por
isso não julgava errada a sua atitude de mentir que a carne era de outro
animal. Os apaixonados por gatos condenavam-no impiedosamente.
Em volta da barraca incomodando os fregueses e o
dono ficavam vários cachorros magros que pediam, uivavam como lobos, mendigavam
um pedacinho de carne para matar a fome. Cachorros estão sempre famintos. Nunca
se saciam. Dormiam e acordavam enrolando nas pernas das crianças. Brincando com
elas às vezes. Latindo para os homens que mexiam com eles. Alguns os espantavam
com xingamentos, gritos e até chutes. Coitados!
Um era de todos especialíssimo. Tinha um olhar de
Baleia sonhando com preás gordas. Faminto mas terno. Desconfiado mas amigo. Era
cachorro de rua. Não podia ser limpo. Vira-lata é sempre sujo. Às vezes dá
nojo. Seu Zé sentia nojo. Os fregueses também.
Rico tinha uma feição de gente. Nas atitudes era cachorro
mesmo. Ia de mansinho pegar sua parte da comida da manhã, sempre preocupado com
os outros. Olhava e chamava dando uma latida para os cães mais novos,
arrastando um pedaço de carne para o cachorro mais próximo. Seu Zé sempre
separava os restos dos espetos deixados pelos fregueses para os cativos
famigerados cães de rua.
Então assim levavam suas vidas de mendicância. Rico
estava muito magro, fraco. Parecia doente. Quando eu passava na ida e na volta
ele latia para mim. Sempre encostado num canto de porta ou na beira da calçada
para não atrapalhar Seu Zé no trabalho. Lambia a pele do lombo por uns quinze
minutos e dormia muito para o tempo passar depressa. Não tinha muito ânimo para
passear pela cidade, conhecer outros cães ou se embrenhar em alguma mata a caça
de uma comida diferente. Ficava ali. Sempre ali. Todos o conhecia. Alguns
tinham pena dele. Outros não.
Um certo dia saí do trabalho às 17:00 horas em
ponto. Seu Zé ouvia a sirene tocar. Eu trabalhava numa fábrica de tecidos. Com
pintura de panos. Deveria ir numa loja para comprar umas roupas de cama que
estavam em promoção. Meu casamento estava marcado para janeiro. Faltavam poucos
dias. Eu estava meio ansiosa por causa dos preparativos e andava no mundo da
lua. Assim que desci a calçada da fábrica fui assaltada por uns moleques que
roubaram a minha bolsa. Rico quando viu saiu correndo atrás deles e eu
instintivamente também saí correndo sem rumo pela Avenida dos Andradas. Corri
por uns dez minutos. Fiquei ofegante. Estava sem dinheiro e sem documentos.
Para minha surpresa Rico alcançou um dos
assaltantes e mordeu em sua canela. Ele se assustou e jogou a minha bolsa do
outro lado da Avenida. Rico correu em minha direção com a intenção de me
proteger. Esperei o sinal fechar e atravessei a Avenida e apanhei a minha
bolsa. Um senhor dono de uma banca de revistas me disse que quando os
assaltantes passaram por ele “ele gritou polícia”. Por isso jogaram a bolsa
para se verem livre da prova do crime.
Minha sorte foi que não deu tempo deles levarem nada.
A bolsa nem tinha sido aberta. Rico foi me acompanhando até chegar ao ponto do
ônibus. Fiz um carinho nele e fui embora.
Fiquei pensando naquele cachorro a noite toda. Ele
realmente não tinha atitudes humanas. Se fosse uma pessoa não teria me ajudado.
Tenho certeza. Todos estão ocupados consigo mesmos. Nem se dão ao trabalho de
ver o que acontece com os outros. Este cachorro é realmente muito rico.
Fiquei pensando o que poderia fazer para ajudá-lo.
Levá-lo para minha casa não seria possível, pois morava em apartamento. Não
tinha lugar para ele lá. Na casa dos meus pais não daria certo porque a minha
mãe não gosta de animais domésticos. Também não sei se Rico gostaria de sair
dali. Aquele lugar era sua casa. Era livre. Era ali que morava desde sempre.
O meu sono foi um pouco conturbado. Sonhei que Rico
voava como um anjo pela Avenida dos Andradas...
O relógio despertou. Levantei sobressaltada e fui
tomar banho para sair. Estava me sentindo diferente naquele dia. Não sabia
explicar. Talvez por ter sido salva por um cachorro me levou a pensar um pouco
mais sobre o real sentido da vida.
Pensei muito na minha infância. Como ela foi
repleta de primos, tios, avós, bisavós, vizinhos, amigos. Tudo isso é muito
especial para mim. Porque o meu olhar para a vida é doce. Eu recebi tanto
carinho que eu teria que viver mil anos para retribuir.
Nos natais tinham árvores, presépios, presentes dos
tios que moravam fora. Tenho tanta saudade deles mas, do jeito que eles eram.
Como eles nos visitavam. Hoje só os vejo nas redes sociais. A internet é uma
espécie de ioiô. Vai e volta na velocidade da luz. Quando chega perto sai
imediatamente. Não dá tempo de sentir o outro. Sentir é infinitamente mais
importante do que agir. Ver a imagem e vez ou outra conversar é como olhar para
uma fotografia de alguém que já morreu. Por vezes passa pela minha cabeça que
quem está do outro lado não existe de verdade. Parece que eu estou falando com
uma máquina não com uma pessoa. É como beijar gelo. Falta calor.
Não estou interessada em discutir as desvantagens
da internet. Pretendo falar sobre as pessoas. Como elas se relacionam com suas vidas.
Com que mentes chegaram a vida adulta.
A minha irmã me disse que tudo que vamos fazer na
vida, para fazer bem feito e não sofrer, precisa ser de coração aberto. Nunca
pude compreender isso da maneira que estou sentindo agora. Porque não é fácil
abrir o coração. Mas quando se abre, descobre-se o mundo. O que é difícil fica
fácil. O que é impossível torna-se pelo menos contornável. E o mais importante:
a tristeza transforma-se em alegria.
Saber o que o outro está pensando é cientificamente
impossível. Porém, podemos saber como nós estamos pensando. Esse pensamento
torna-se concreto nas nossas ações, nas nossas atitudes, na maneira como nos
expressamos emocionalmente. O olhar diz muito a nosso respeito.
De vez em quando fleches de luz dos olhos de Rico
atravessavam a minha retina. Enquanto, com a pressa costumeira, me arrumava
para sair. Fiquei pensando o que tinha acontecido no dia anterior. Rico, o
assalto, Seu Zé e seus churrasquinhos. Saí; Tomei o ônibus e fui para o
trabalho com a cabeça fervilhando em pensamentos sobre o ocorrido e minhas
próprias reflexões sobre família. Sobre como as pessoas se comportam em relação
às outras. Atitudes, valores, a internet (mundo globalizado), os sábios
conselhos da minha irmã. Tudo isso fazia parte de mim naquele momento de
maneira tão intensa que não sabia explicar por quê. Parecia uma presságio, uma
premonição. Enquanto sacodia no ônibus tentava espantar maus pensamentos
cantando uma musiquinha bem baixinho. Só para mim. Usava somente a voz interior
como forma de me consolar a mim mesma de algo que nem sabia o quê.
De repente o ônibus parou abruptamente no semáforo.
O meu ponto já estava próximo. De longe, antes de descer, todos os dias via
Rico pela janela. Naquele dia não o vi. Pensei que estivesse escondido em
alguma marquise por causa da chuva. Mas não estava chovendo. Pensei que pudesse
ter acompanhado algum cachorro. Fiquei imaginando o que pudesse ter acontecido
com ele, enquanto a passos apressados fui em direção a barraca de Seu Zé.
Perguntei onde estava Rico e ele respondeu sem olhar para mim. Acho que nem
abriu a boca direito. __ Não sei não. Eu continuei interrogando o homem mas de
nada adiantou. Seu Zé dizia que não, não sabia de Rico. Disse que quando chegou
cedinho o vira-lata já não estava lá. Fui para o trabalho...
Nunca mais vi Rico na minha vida. Até hoje quando
penso nele imagino o coração dele sempre aberto para as pessoas, na amizade,
nas atitudes e gestos. Do jeitinho que a minha irmã me ensinou. Vejo-o voando com asas nas costas vigiando as
ruas das cidades grandes que precisam tanto de proteção!
Jamais perdoarei Seu Zé porque ele mesmo confessou
a mim uns dias depois que havia jogado um caldeirão de água fervendo naquele
cachorro vira-lata maldito...
Chorei e ainda choro de dor...
5 comentários:
Que atitude bonita e corajosa a do nosso amigo protagonista Rico. A fidelidade e o senso de proteção dos animais, principalmente os cães é algo que emociona e nos faz pensar no quanto estes amigos são especiais! Muito bom seu texto! Marina Alves.
(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação indicam que o texto precisa de uma pequena revisão, o que não oculta a característica muito positiva de que a história é comovente e chama o leitor à reflexão. Houve momentos em que o texto ameaçou fugir do tema que vinha sendo tratado, mas logo voltou aos trilhos. A escolha do título, considerando o texto, desperta perguntas. Se isso é bom ou ruim, fica por conta de quem vai julgar os textos deste concurso, mais tarde. Trata-se de uma narrativa que, pela carga emocional, pode vir a envolver bastante o leitor, eu me senti envolvido em vários momentos. Um relato simples e convincente que parece aproximar-se bastante da proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Avaliação pessoal: entre regular e bom. Parabéns à autora ou ao autor. (Torquato Moreno)
Texto com enredo envolvente e dentro dos parâmetros do concurso. Há pequenas incorreções facilmente contornáveis. Parabéns a quem o produziu.
A maldade humana foi bem retratada. Um bom texto.
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