Duas e meia da madrugada. Fui
despertada por um som agudo e penetrante invadindo meu sono. Apreensiva,
caminhei morosamente até a sala. O toque
do telefone e de madrugada, assim como a chegada de telegramas, nunca fora para
mim, um bom sinal. A morte do meu
padrinho, da minha melhor amiga e do meu querido tio, o único irmão do meu pai,
chegaram por esses meios. Como um espelho, o tempo, inexorável, implacável,
testemunha a minha dor.
Depositada em minhas
mãos, em poucas palavras ou sussurradas ao meu ouvido, como um tabu, uma
proibição milenar, a morte anunciava contundente, irremediável, o findar da
vida, a incompletude, a solidão e fragilidade dos laços que criamos, ao longo da
nossa história. Nunca me recuperei e acreditava
que já não suportaria mais sofrimentos...
À medida que eu
caminhava, o pânico me tomava: minha mãe... Meu pai! Por instinto ou intuição
pensei: está morto. O telefonema foi apenas a dura confirmação do que meu
coração antevira e antecipara. Num lampejo, uma lembrança...
Eu, de pé, ao lado da
minha cama. Meu pai à frente, me dizendo: a amizade é uma força tão ou mais
poderosa que o amor para a vida humana! Quarenta anos depois é que pude
compreender a profundidade daquela frase dita por ele. Acrescentaria apenas: ambos
podem surgir de forma inusitada, inesperada. E se manifestarem intensamente por
pessoas, animais e objetos, também de forma indistinta. Porque escrevo isso? Deixemos
a conclusão de lado. Afinal cada um terá a sua. E continuemos esta pequena história!
Atordoada, desliguei o
telefone. E a esmo, fui parar na cozinha. Sufocada, abri a porta e corri para o
quintal. A cada passo apressado, o vômito incontido, jorrava. Dentro de mim, a contenção de uma barragem,
se arrebentara! A devastação que eu
sentia, era a mesma de um sobrevivente único de um cataclismo! Ou daquela que é a mais temida e por todos: a
tenebrosa guerra nuclear.
Desnorteada, amparei-me no
tronco do pé de jabuticaba. Meu refúgio desde a infância. A cada briga ou
repreensão dada por minha mãe ou meu pai... Tão querido e que agora, sabia eu,
viveria apenas nas minhas lembranças. Também despertadas pelas marcas dos seus
dedos, nos variados instrumentos que ele tocava com maestria e delicadeza nas
festas e comemorações em casa ou na vizinhança.
Aos poucos, e mais
perto, eu escutava os sons: do cavaquinho, do violão, do bandolim, do acordeão
e do piano... Era como se eles também, não suportando o silêncio, que
certamente, daria o tom, dali em diante, à nossa casa, se refugiassem, ali, ao
meu lado!
Repentinamente e
alucinada, eu corria, dando voltas no pé de jabuticaba. Até que eu percebi um movimento estranho ao
meu redor.
Confusa e apavorada,
gritei! Pertinho de mim, quase aconchegado no meu ombro, um filhote de morcego,
também num vôo desvairado! Ensandecida comecei a indagar: o que ele está
fazendo? Porque não me ataca, porque não foge, por quê? Porque meu pai morreu
assim tão de repente, porque essa dor tão insuportável? Porque a impressão de
que meu coração só está batendo pela metade? Por quê? Por quê?
Meio ao insuportável silêncio
e à esmorecida espera, reparei que a manhã, ainda que débil, se aproximava e,
me oferecia o sol, que acabara de pular o muro e tocara, de leve, o meu peito. Vagarosamente,
ele foi se esticando até o meu colo, me doando aquele calorzinho: bálsamo para
a minha alma tão desalentada. Um gesto de simpatia e de afeto, de Apolo, o deus
da luz e da cura. Sabia ele, que nunca mais eu seria a mesma.
Com a morte de alguém, um pouco da
gente também morre junto e o brilho da vida tremula do mesmo modo que a chama
de uma vela quando o vento sopra-lhe o pavio.
Mesmo sentada, minha
cabeça rodava, rodava, rodava. Para minha surpresa e consternação, vi um
morcego grande morto no chão. Chorei copiosamente, um pranto profuso. Caía de
mim, uma chuva torrencial. Daquelas que molhavam o pé de jabuticaba e o
preparava para os doces frutos, que colhíamos e entregávamos à minha mãe para
que ela fizesse a geléia e o vinho que saboreávamos no café da manhã e almoço diário
da família.
Um movimento súbito espertou-me.
Estanquei o choro e olhei para baixo
No meu colo, molhadinho e assustado
o filhotinho de morcego tentava um tímido vôo. Constatei que era dele, o pai morto, no chão. Delicadamente,
eu o coloquei no galho mais alto e ao meu alcance. Guardei-o ali, no escurinho,
na sombra. Só para mim e o nomeei!
Desde então, nas
madrugadas, Ícaro e eu, giramos, em torno da jabuticabeira numa insólita homenagem
à amizade! Com sorte, a morte nos enlaçou e nos fez consorte! Muito mais
do que a força da rima e do trocadilho. Eis a mais pura e simples convicção!
2 comentários:
(Padrão usado em todos os textos comentados para dar a todos um tratamento igual). Fazendo pois uso dos critérios apontados no regulamento, deixo aqui minha impressão: ortografia, gramática e pontuação: em ordem. Durante a leitura tive a impressão de que o autor ou a autora fez uso consciente da pontuação para levar a algum efeito lírico (no caso da recitação do texto, talvez). Assim sendo, se há erros desta natureza, não detectei. A ideia é boa e a história é contada de modo interessante, envolve o leitor. Parece estar dentro da proposta do concurso (observando o requisito de demonstração de afeto pelo animal). Avaliação pessoal: entre bom e muito bom. Parabéns à autora ou ao autor e boa sorte! (Torquato Moreno)
O texto é bom e demonstra que o autor domina bem a linguagem escrita assim como a definição das imagens literárias, mas no meu entender, está fora do parâmetro do concurso. Parabéns a quem o produziu
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