quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Gratas lembranças - Autora: Celêdian Assis

Às vezes somos apanhados e surpreendidos por lembranças do passado, que se mantinham guardadas lá no fundo do baú e revivemos certos momentos tão lucidamente, que dá-nos a impressão de que os vivenciamos bem recentemente, tal é a fidelidade com que os detalhes são lembrados. E ai não nos damos conta de quanto tempo tudo aconteceu. Para deflagrar o mecanismo das lembranças pode ser suficiente uma palavra, um texto, um gesto ou uma situação corriqueira.

Um dia destes estive lendo a crônica “Entre copas e beijos” do genial escritor mineiro, um mestre das crônicas, José Cláudio Adão, que escreve no Recanto das Letras e teve lançado seu livro recentemente. Pois bem, ele narrava sobre as dificuldades dos namoros em anos passados, pela vigilância severa dos pais das moças e relembra um fato acontecido com ele e um amigo, numa cidade do interior durante da copa do mundo de 82. Na cena descrita por ele, havia uma passagem entre o amigo, a namorada e o sogro, que envolvia uma televisão, já não tão antiga para a época.

Esta passagem remeteu-me à copa de 70, quando eu ainda morava no interior e foi ai que levei um baita susto, quando fiz as contas e percebi que já se passaram 40 anos e o quanto a tecnologia avançou. Nos anos setenta, minha pequena cidade natal, Piracema, contava com apenas três televisores, recém chegados à cidade e coincidentemente este foi o ano da primeira transmissão ao vivo, dos jogos da copa. Um destes televisores era da minha casa, da marca Telefunken (lembram desta marca?). Eram daqueles de válvulas e que esquentavam quando ficavam muito tempo ligados, imagem em preto e branco, que quase não se via, de tanto que “chuviscava” (expressão que se usava para definir aquelas listras, contrastes semelhantes a chuviscos, que deixam a imagem toda disforme). O som era “chiado” e às vezes sumia de vez.

Imaginem só o que representava esta TV em plena copa do mundo, onde praticamente ninguém da cidade jamais tinha visto uma. Foi neste clima de euforia pela chegada da TV e maravilhoso espetáculo que era a nossa seleção, que a sala de nossa casa se transformou quase que em um cinema. Lotada de gente se acotovelando, além das janelas apinhadas, pois eram baixas e permitiam a visão da TV.

Apareceu entre os “telespectadores”, uma figura muito interessante, o Professor Rocha. Ele não era da cidade, mas estava morando lá, havia pouco tempo. Professor de matemática, era um sujeito muito esquisito, com umas atitudes que faziam parecer que fosse meio louco, o que de certa forma, por receio das pessoas, garantia-lhe respeito. Ele exigia que os alunos no Ginásio, no início de suas aulas cantassem o Hino Nacional e contava muitas “estórias” do tempo que fora combatente de guerra. Quando terminava de contar, sempre dizia enfaticamente: “Obrigado, obrigado, Rocha”

Ainda não era a final da copa de 70 e as pessoas nem podiam se mexer direito naquela sala pequena, a maioria sentada no chão e alguns nas caldeiras e sofá, eis que a seleção canarinho entra em campo e se preparava para ouvir o hino. Lá estava o Professor Rocha, que exigiu que todos se levantassem e ficassem em “posição de sentido” e que era obrigação cantarmos juntos. Como na escola era obrigatório cantar o Hino Nacional todos os dias, praticamente todos nós sabíamos. Virou-se para os que estavam nas janelas e disse-lhes que a “ordem” era também para eles, ou as fecharia.  Nós, os donos da casa nos entreolhamos surpresos, mas o certo é que o obedecemos. Aquela cena se repetiu até o jogo da final e ficávamos todos muito emocionados. Ao final com aquele ar grave, sisudo ele agradecia: “Obrigado, obrigado, Rocha”.

Hoje diante de aparelhos de TV que mais parecem uma tela de cinema, nos quais podemos perceber até pequenas marcas na pele das pessoas, tamanha é nitidez da imagem e assistindo a copa de 2010, algo me incomoda muitíssimo. Ver os lábios de alguns, talvez da maioria dos nossos jogadores, mexendo-se mecanicamente, simulando que estão cantando o hino, porque não sabem cantá-lo. Ora, eles principalmente, que são estrelas do futebol milionário e que tenho certeza possuem os melhores eletrônicos do mercado, será que ainda não perceberam quando assistem TV em suas casas, que tal simulação é perceptível ao mais desatento telespectador? Será que não se lembram que neste momento estão representando o seu país? Ou será que as escolas não se interessam mais em imbuir nos alunos o espírito de patriotismo?

Dirão alguns, cantar o Hino Nacional não representa patriotismo, que bobagem! Pode ser que estejam certos, mas creio que a emoção que ele nos causa, pelo menos em mim causa arrepios, é uma forma de sentirmos o quanto o nosso país nos importa e quem sabe nos preocuparíamos mais com os rumos que estamos dando a ele, através do direito legítimo que a democracia nos oferece. Nunca mais soube do Professor Rocha, mas se o encontrasse, seria eu a dizer: Obrigada, obrigada, Professor Rocha!

Autora: Celêdian Assis - Belo Horizonte/MG

Publicação autorizada pela autora através de e-mail em 16/10/2011 

3 comentários:

Patricia disse...

Hoje as lembranças são muito comuns. Feliz de vocês que viveram uma época sadia e repleta de momentos simples mas eternos.

Fabiana Lopez disse...

Minha mãe conta de um aparelho de televisão de nome Colorado. Um verdadeiro caixão sobre quatro pernas de madeiras. E pra funcionar? Ela disse que esperava uns dez minutos pra imagem aparecer. Bela crônica Celêdian, adoro suas criações.

George Dias do Nascimento disse...

Soube do blog do Carlos aqui mesmo no trabalho, somos da mesma empresa. Gostei muito porque trata tem muitos textos que tratam de coisas simples porém importante. Sempre digo: quem não gosta de animais ou de reminiscência, bom sujeito não é. Gratas lembranças da escritora CELÊDIAN ASSIM reflete bem a imagem do blog. Ao você falar na copa de 70, lembrei de uma passagem interessante. Levei um aparelho para uma serra tentando assistir um jogo da copa. Pessoas da localidade foram cercando o aparelho também querendo assistir. O lugar era muito atrasado e televisão só de ouvir falar. Quando o Pelé deu uma estrevista, um habitante do lugar querendo se mostrar informado disse: ¨Esse escurinho não sabe nem o que está dizendo¨. Tempos atrasados aqueles antes da chegada do sinal de televisão em todos os lugares. Parabéns escritora.