sábado, 18 de fevereiro de 2012

Um amor violento - Autor: Nêodo Ambrósio de Castro

Eu me lembro bem do Valdevino. Eu o conheci, quando morei em Maravilha do Sul. Sujeito que falava grosso, era também um pouco grosso no trato com as pessoas. Tinha uma próspera propriedade rural, que herdou do pai, mas morava na cidade. Era mais cômodo, pois sua esposa, Dona Martinha era professora no Grupo Escolar.

Sempre nos encontrávamos no clube, nos dias de domingo, e ele sempre bebendo a sua cerveja em companhia dos seus amigos.

Vez ou outra levava suas filhas, três meninas que ele adorava, fazia todos os gostos das pequeninas.

Discutia muito política e futebol. Gostava do Vasco da gama, era o seu time do coração, herança de seu falecido pai, se quisesse uma briga com ele era só falar mal do Vasco. Brigava por qualquer motivo, bastava um pequeno desentendimento, um bate-boca e logo partia para a agressão. Diziam que tinha o pavio curto. Coisas lá do Sul.

Com a esposa, dona Martinha, estava sempre em litígio. Qualquer coisa era motivo para uma discussão que algumas vezes acabava em agressão e até em separação.

Dona Martinha não dava muita sorte, seus pais também eram assim, falavam as más línguas que era culpa da mãe dona Santinha que estava sempre aprontando com o senhor Josué, seu marido. Também brigavam muito e às vezes, ela, nem podia sair de casa por causa dos olhos roxos de porrada. Cabra macho esse tal de Josué. Bastava dona Santinha dar uma furtiva olhada para o lado e começava os beliscões e quando chegavam em casa, não tinha jeito, dava logo discussão.

Brigaram tanto que acabaram morrendo juntos e brigando. Por causa de uma besteira a toa, Josué, vinha da cidade vizinha, com dona Santinha e começou a discussão, dentro do carro mesmo, os palavrões os empurrões até que desgovernado o seu carro caiu ribanceira abaixo e não sobrou nada. Morreram os dois, brigando, para não desagradar as más línguas que diziam que nasceram e morreram brigando.

Com Valdevino foi um pouco diferente. Diziam que ele também, era igual o sogro. Ciumento não gostava de ver a mulher conversar com outro homem. Quando isso acontecia, ficava uma fera, chegava em casa já bêbado e começava a quebrar tudo, até que quebrava a cara da própria mulher. Depois disso, já satisfeito voltava para o botequim e bebia até cair. Isso quando não arranjava uma briga, sempre com dois ou três, para mostrar que era cabra macho. Depois de muito machucado era comum passar a noite na cadeia, único lugar que conseguiam levá-lo, mas só depois de beber até ficar pra lá de bêbado. Ninguém era besta de querer arrastá-lo naqueles momentos, para a carceragem, a menos que já estivesse derrubado.

No dia seguinte, morto de vergonha das arruaças que aprontara na noite anterior, metia a cara para a sua roça e lá ficava alguns dias curtindo a dor de cotovelo e a saudade da mulher Martinha. As vezes isso durava dias.

Dona Martinha, gente boa que não guarda rancor, pouco ligava para onde seu marido andava. Sabia que ele curtia a vergonha e se esburrando de cachaça, na fazenda, e dormindo pelo chão. Depois de semanas, quando não agüentava mais, voltava para a cidade, com a desculpa de ver as filhas, das quais sentia muita saudade. Ia chegando, devagar, como quem não quer nada. Parava na venda do Beto e lá comprava aquelas bugingangas que criança adora e muito doce (balas, pirulitos e chicletes). Detestava ver as filhas mascando chicletes, estragavam os dentes, mas naquela hora tinha que fazer vista grossa, senão as coisas ficavam mais difíceis para ele.

Com essa desculpa ia chegando. Abraçava as crianças, distribuía os presentes e quando dona Martinha estava, ia logo perguntando se estava precisando de alguma coisa. Como havia passado aqueles dias e ia falando, justificando, fornecendo detalhes da fazenda. A vaca branca deu cria. Precisa ver que bezerrinho bonito, todo branquinho que nem a mãe. Está dando muito leite. Vamos aumentar a cota. O girardo, (um dos cães da fazenda) coitado, está com bicheira no rabo. Vive se coçando na cerca da horta. Não sei que fim ele terá, pois não deixa ninguém chegar perto para tratar.

Ah! Encontrei com o seu Nenzinho e a mulher, mandaram lembranças.

Assim começava o diálogo entre eles. Dona Martinha, santa mulher, um pouco nervosa – puxou a mãe –,mas não guardava rancor. Sempre acolhia o Valdevino e assim ficavam algumas semanas, às vezes meses sem briga.

Era bom, segundo dona Martinha. - Quando não bebe, é o melhor homem do mundo. Me dá muito carinho, até ajuda no serviço de casa. Mas depois da bebedeira é um inferno. Tenho que agüentar a mesma ladainha. Palavrões e até pancadas. Mas é só uns dias na fazenda e volta que nem gatinho manso.

A vida de Valdevino e dona Martinha era mesmo assim não havia jeito de mudar. Fizeram promessas, novenas, até levaram os dois para o famoso Encontro de Casais com Cristo. Mas igual a tudo que faziam, durou pouco. Alguns encontros algumas reuniões, rezas leitura da Bíblia, conselhos, depoimentos até que um dia o mais animado do grupo, o famoso Amaro inventou uma confraternização no domingo. Churrasco com asinha de frango, lombo e picanha na brasa e cerveja à vontade. Até o padre foi convidado. Antes da festa houve corrente de oração e muita conversa saudável, até que à medida que o estoque de cerveja ia baixando, o clima ia se tornando mais tenso. Dona Martinha não podia levantar-se da mesa nem para ir ao banheiro que o Valdevino torcia a cara. E quanto mais contrariado, mais cerveja tomava. Com a cara cheia de cerveja e mal agüentando-se nas próprias pernas, entendeu que sua mulher estava de prosa com um integrante da turma. Foi alimentando aquele ciúme infundado, até que, num gesto brusco, que lhe era bem natural, sem mais nem menos, agarrou dona Martinha pelo braço, chamou as crianças e gritou vamos embora. Não houve um até logo, até outro dia, tchau. Se mandou arrastando a mulher e as filhas.

Ninguém entendeu, nem o Padre que sempre compreendia as atitudes impensadas dos seus fiéis. Por que eles se foram? Estava tão bom. Será que se aborreceu com alguma coisa? Não, disse o Padre. Ele só teve uma pequena crise de ciúme amanhã estará tudo bem e ele até irá pedir desculpas pela saída inesperada.

Mas isso não aconteceria.

Valdevino, à medida que caminhava para casa, empurrava dona Martinha e gritava com as filhas. Anda moleza parecem lesmas.

Foi só fechar a porta da casa e começou, de novo o tal inferno, tão temido e esperado por dona Martinha. Palavrões, socos nas paredes, quebra-quebra, até que veio aquele punho em direção ao seu rosto e ela sentindo um impacto violento, como uma batida contra uma parede de pedra, desabou e lá ficou estendida no chão da copa e as filhas gritando por socorro. Apavorado, Valdevino se mandou.

Na fazenda fez o que lhe era costumeiro. O garrafão de cachaça, os palavrões que falava com ele próprio e foi bebendo e a cabeça rodando até que caiu desmaiado no meio da cozinha da casa.

De manhã a mulher do caseiro o encontrou e logo foi chamar o marido, o Murilinho, a quem pediu ajuda. Colocado na cama só levantou lá pelo meio dia. Estava muito envergonhado e desconsolado o Valdevino. Foi para a varanda do casarão e lá passou a tarde toda, não quis conversa com ninguém nem saiu para o pasto ou para a roça.

Ficava de olho fixo naquele pé de goiaba que havia na frente da casa. Quem o visse, naquele estado, diria, logo, que havia parado de pensar.

Mas lá ficou até o anoitecer. Quieto, sem falar nada. Só pensando.

No outro dia, bem cedo, foi até o porão da casa, onde guardava os arreios dos cavalos e outras tralhas. Escolheu uma corda, dessas usadas para amarrar cavalo brabo e encaminhou-se até a frente da casa. Subiu no tal pé de goiaba. Bem lá em cima. Amarrou, com bastante cuidado, a corda, experimentou a sua resistência e a do galho, certificou-se que agüentava o seu peso e depois de tudo pronto, fez um laço na outra ponta, engatou no próprio pescoço e se atirou. Esperneou um pouco, mas logo ficou imóvel. Ali ficou não se sabe por quanto tempo, mas quando o acharam já estava frio.

Chamaram todos os vizinhos, Murilinho, o caseiro e o seu Nenzinho o vizinho mais próximo, conseguiram cortar a corda e o corpo despencou lá de cima. Levaram para a copa da fazenda onde havia uma mesa enorme feita de taboas grossas e lá o deitaram. Nem precisa de médico, para ver que está mortinho, disse o seu Nenzinho.
Dirigiu-se ao caseiro e disse: - Vá até a cidade e comunica os parentes para ver o que vão fazer com o corpo.

E lá foi o Murilinho de olhos arregalados, ainda não acreditando no que tinha acontecido, foi logo à casa da viúva e, sem rodeios, contou como achou o corpo do Valdevino.

Deu-se, então, o enterro, a choradeira, que foi mais dos estranhos do que da família, cessou rapidamente quando o corpo desceu à sepultura que foi tampada com a terra. Dali, cada qual para a sua casa, uns um pouco assustados outros aliviados, com uma certeza, não haveria mais quebradeira, palavrões e manchas roxas nos olhos da dona Martinha.

Autor: Nêodo Ambrósio de Castro - Eugenópolis/MG

Páginas do autor:
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Publicação autorizada através de e-mail de 06/11/2011

2 comentários:

Carlos A. Lopes disse...

Como sempre Nêodo Ambrósio nos presenteia com um texto digno de reflexão. Uma bela crônica e, infelizmente o retrato de muitas famílias desse Brasil de meu Deus.

Fabiana Lopez disse...

Quem ler sua crônica tem a impressão de está a ler um livro. Escritor de verdade tem a sua parca. A sua é esta. Excelente crônica, triste mas das boas.