Padre Anacleto ia pra
Perdição. Estradinha a fora, cheia de buracos e de poeira, dirigindo seu
fusquinha velho. Curva em cima de curva. Matão danado em volta. Se Tabuí já é
sertão, imagine só o que era o sertão de Tabuí. Fusquinha ora engasgava, ora
tremia, ora dava umas rateadas, mas ia indo. Subida então, era um desarranjo.
Carrinho aprontava berreiro danado, soltava fumaça por tudo quanto é buraco,
mas ia rodando. Seu vigário um tanto quanto pesado.
Aí chegam os dois, Padre
Anacleto e o fusquinha, no matão mais fechado. Aquele onde todo mundo falava
que tinha umas onças... Bichanas nem podiam sentir cheiro de carne humana que
tavam em cima da carniça. De tão fechado o mato, parecia até que tinha
escurecido. E, para arrematar, povão dizia que assombração ali também era mato.
Sô vigário não acreditava muito nessas coisas não, mas por via das dúvidas, era
bom ficar prevenido. Foi lá que aconteceu a desgraça: pneuzinho careca do
fusquinha furou. Rodar com pneu furado prejuízo na certa. Paróquia pobre. Padre
pobre. Sair do carro risco grande demais. Coragem pouca. Padre Anacleto
craneia, craneia e não acha solução. Nenhum vivente à vista. Ninguém para uma
demãozinha. Viu que tava mesmo cagado de arara. Casamento lá na Perdição tinha
hora marcada. Noivinha já devia estar chegando à igrejinha na charrete toda
enfeitada. Agoniada esperando a grande hora.
Com um friozinho na
barriga coitado do padre resolve sair do carro e trocar o pneu. Rezando o
Creindeuspadre. Atento a qualquer barulho. Suando frio dentro da batina larga e
puída. Olhando de rabeira pra tudo quanto é sombra. Pronto para refugar frente
a qualquer sinal suspeito. Trabalhão danado pra tirar pneu furado. Mãos
acostumadas a rezar missa, sem traquejo com chaves, macaco e parafusos. E a
tralha velha não colaborava: macaco sem óleo, chave da boca maior que as
cabeças dos parafusos... Tirou o bicho mais no muque, com uns palavrões
seguidos de Padrenossos, do que com a ajuda do macaco e da chave de rodas.
Pegou a calota, virou-a de boca pra cima e nela colocou cuidadosamente os
quatro parafusos pra não perder nenhum e nem pegarem poeira. Como o carrinho
estava meio mole, freio de mão avariado, resolve procurar uma pedra para calçar
o danado. Bem no barranco, assim perto duma moitinha, vê uma pedrona boa. Borrando
de medo, mas com muita fé em Deus, sai de perto do carro e vai pegá-la. Um pé
na frente e o outro atrás, pronto para a refugada. Quando tá com a bruta nas
mãos, fazendo força, ouve um barulhão dentro da moita. Sente aquela friagem na
espinha, pernas amolecem, coração acelera e os poucos cabelos arrepiam. Mas
instinto de sobrevivência fala mais alto e o pobre do Padre Anacleto sai numa
desabalada corrida carregando a pedra. Reto no rumo do fusquinha. Chega perto
do carro, solta a dita cuja de qualquer jeito e tafuia dentro dele esperando
pelo pior.
Fica no quieto tempão
danado, a ponto de rezar quase todo o rosário, e... nada. Bicho nenhum aparece.
Nem assombração. Negócio era criar coragem novamente e voltar ao que tinha
começado. Melhor pensar que o barulho era de algum lagarto ou de um gato do
mato assustado. Assim que o padre sai do carro é que vê a burrada que fez. A
pedra caíra na borda da calota e, com a queda, jogou os parafusos pra longe, no
meio do mato. Achá-los, impossível. Procurar, nunca. Desespero toma conta do
coitado. Xinga umas palavras em italiano, mas rapidinho se arrepende e pede
perdão a Deus. Já sujo, molhado de suor, rezando baixinho, com fome, senta lá
dentro do carro esperando solução. Noite chegando. Medo agoniado e inconfesso
espremendo o peito.
Depois de muito rezar, vê
um vulto aparecer lá no alto do morro. Põe óculos, tira óculos... E o vulto
descendo. Devagarinho. Pára, anda, pára de novo. E o Padre Anacleto tremendo e
butucando de olho arregalado:
- Ai Dio mio, agora é
sombração mesmo!... O que que eu fiz de errado, meu Deus? Virgem!...
O santo homem sente
vergonha de si mesmo, do medo que estava sentindo e se lembra até dos sermões
que fazia na missa do domingo contra essas crendices pagãs. Na prática teoria
era outra. Novamente põe óculos, tira óculos e o vulto vindo. Sem pressa,
naquele mato escurecente. Quando o vulto chegou bem perto foi que o Padre
Anacleto entendeu que era gente. Gente de verdade. E não é que ele conhecia o
dito? Era o Dejalma. O doido lá de Tabuí.
Aí Padre Anacleto se
encheu de coragem e saiu do carro. Foi com santo alívio que cumprimentou o
recém-chegado:
- Boa tarde, Dejalma! O
que que anda fazendo por estas bandas, figlio mio?
- Tarde!
- Tá passeando, Dejalma?
- Pensano!...
- Pensando em que,
Dejalma?
- Cê leva ieu?
O padre pensou consigo
mesmo: "que adianta eu querer conversar com este maluco? O maledetto não
diz coisa com coisa mesmo!". Mas, como não queria perder a companhia,
mesmo sendo de um lelé da cuca, continuou o papo como se fosse tudo dentro da
maior normalidade.
- Levar, levo, figlio!
Negócio é que o pneu tá furado...
- Por que ocê num troca?
- Era o que eu ia fazer,
Dejalma, mas perdi todos os parafusos desta roda e não tenho outros para
colocar no lugar...
Dejalma parece que
esquece do que estavam falando. Fica olhando pro mundo. Resolve dar uma volta
em torno do carro como se o examinasse com olhos de comprador. Olha daqui, olha
dali... Desenha uma careta no vidro empoeirado... Dá uma risada... Abre porta,
fecha porta... Pára. Olha pra moita na beira do barranco onde vê um pé de
murcha-mulata carregadinho de flor. Vai lá, pega um galhinho e vem cheirando.
Sô vigário só de butuca. Quando ia perguntar se podia contar com aquela
companhia maluca noite a fora, naquele ermo, Dejalma dá uma aspirada na
murcha-mulata e olhando para um ponto fixo no espaço, diz:
- Por que ocê num tira um
parafuso de cada rodeira e põe nessa?
Foi tudo muito rapidinho.
Padre Anacleto e o Dejalma chegaram à Perdição quando a noiva, triste e
chorosa, estava dentro da charrete pronta pra ir pra casa e o povão já
indignado com o que seria uma grande desfeita do seu vigário. Ninguém entendeu
foi porque o Padre Anacleto estava andando na companhia daquele maluco. Também
ninguém perguntou. Povo da Perdição é assim: não é especula, só sabe o que é
pra ser sabido.
Autor: Eurico de Andrade - Brasília/DF
Autor: Eurico de Andrade - Brasília/DF
Blog do autor: http://tabui.blogspot.com/
Publicação autorizada através de e-mail de 05/02/2012
Um comentário:
Fantástico! Que conto bom demais de ler! Estou encantado. Parabéns!
Abraços sempre afetuosos.
Fábio.
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