Autora: Maria Mineira
As velhas cochichavam:
-Credincruiz! Difunto se rindo é coisa do Demo!
Pois naquele velório ninguém atinava o motivo do
risinho indecoroso, assim mei de ladinho, sob o bigode do Nicolau. Houvesse ali
um astuto adivinhava seu semblante de puro contentamento e deleite.
Abatida, se via Manuela ao lado do marido Ludgero.
Passaram a noite em claro, velando o corpo do boiadeiro Nicolau Simão. Noutro
canto da sala, chapéu no peito, todo contido em si, Joãozinho ali estava, sem
coragem de olhar nos olhos dela. Aquele conluio era segredo que levariam para o
túmulo.
Na cozinha, as comadres diziam:
-Tadinha da Maneca, num é pra menos ficá abobada
assim. O danado do home vei morrê na sala da casa dela. Disséro qui tava
isperano o Lugero chegá do sirviço, pra modi niguciá umas cabeça de gado,
quando istribuchô e caiu mortim. Num fosse o Joãozin ta pru perto...
Ensimesmada, Manuela lembrava como viera parar ali.
Casou novinha, para cumprir gosto do pai, com Ludgero, fazendeiro viúvo, sem
filhos e já bem erado. Não gostou nem desgostou. Não fora criada para escolher
marido. O começo foi tudo novidade. A fazenda tinha terra que não acabava mais,
muito gado e plantação. Com o passar dos anos, ela se viu como um enfeite da
casa; uma propriedade do marido ciumento.
Quando entrava na cozinha, onde reinava a velha
Sinhana preta só ouvia:
-Sinhô Lugero falô qui num quê muié dele isquentano
barriga no fugão e isfriano na bica, não...
Às vezes, queria cuidar do jardim, mas aquele
rapazinho acanhado lhe tirava das mãos as ferramentas:
- Patrão num qué a sinhora quemano nesse solão. Sô
Lugero falô pa modi ieu num dexá, não. Issu é sirviço meu.
Dezembros e janeiros e a chuva a malhar no telhado
por dias a fio. O tempo se arrastava naquele fim de mundo. Debruçada na janela,
ela avistava o cafezal onde as pessoas pareciam formigas trabalhando. Via
Joãozinho a cuidar dos arredores da casa. O rapaz era peão de confiança do seu
marido, parecia que estava ali o dia todo vigiando, contando seus passos... Ou
era só cisma sua?
Um dia cedinho, depois que Ludgero saiu a campear
um boi sumido, Manuela botou vestido bonito, aquele que tinha dois botõezinhos
teimosos em morar fora da casa, revelando um tiquinho dos seus guardados. Se
abeirou do curral.
Toda prosa, trepou na cerca, caneco na mão; pediu
que Joãzinho lhe desse leite da formosa, -a melhor vaca do curral- o peão
encabulado, rosto amoitado no chapéu de palha, custou a lhe cumprir a ordem.
Foi nesse dia, que Joãozinho sentiu num leve roçar
de dedos, o calor da mão dela. Escabreado, afastou depressa a sua. Aquilo foi
brasa a lhe queimar mão, braço e todo corpo. Daí por diante, madrugava para que
a patroa não o achasse mais no curral. Deixava cedinho o balde de leite na
cozinha, com a Sinhana preta e sumia no mundo a caçar serviço longe das vistas
dela.
O fim do sossego de Joãozinho foi quando o
boiadeiro Nicolau Simão, danou a rodear a casa, depois que o patrão saía.
Piorou quando o viu entrando para um café a convite de dona Manuela, que se
animou por demais com aquelas visitas.
João perdia noites de sono cismando:
-O qui fazê? Falá das visita ao Sô Lugero? Não!
Isso nunca! Ele dava cabo da vida dela, tadinha... E se ela num devesse? Ele ia
morrê de remorso.
De mãos atadas viu o outro se adonar aos poucos das
horas ociosas da mulher do patrão, que se estendiam tarde adentro sempre que
ele não estava em casa.
Criando coragem foi indagar a Sinhana preta, na
esperança de ouvir alguma coisa que o tirasse daquele desatino. Em vão! Ela deu
de ombros, pois estava com pressa a cozinhar uma canjica para o Sô Nicolar, a
mando da patroa.
Aconteceu numa tarde quando nem os passarinhos
cantavam. Joãozinho ouviu um berreiro vindo da casa. Largou a enxada no chão e
correu para acudir. Entrou às pressas sem bater, foi pra donde vinha o choro da
patroa.
O que se passou naquele quarto o atormentou pela
vida afora... Viu esparramado na cama, o corpo gordo e nu do boiadeiro, na
mesinha, um prato com vestígios de canjica. Olhou ao redor; lá estava ela como
veio ao mundo. Por respeito, pelejou pra não olhar, mas suas vistas não
obedeceram. No desespero Manuela não tivera pudor de cobrir-se. Seus olhos se
cruzaram e falaram por si. Sentindo ciúme, vergonha e medo, João começou a
ajuntar rapidamente as tralhas do morto.
O tempo urgia. Tinham muita coisa a fazer...
Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG
Página da autora:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=86838
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Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE
Publicação autorizada pela autora
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3 comentários:
Minha cara Maria Mineira, adorei seu texto. Repito o dito em sua página no RL: ¨Texto enxuto,movimentado e inteligente¨. Acrescente: A gente vai lendo e tendo a sensação de que não acabe rápido.
Maria, Parabéns. Você está ampliando seus horizontes. Já conhecia o causo, que é muito bom, assim como são todos os que você escreve com essa deliciosa mineirice. Um abraço.
Não é à toa que Maria faz o sucesso que faz com seus contos bem narrados. Quem é que resiste a uma leitura desta? Aplaudindo e lhe dando mais uma vez os parabéns! Abraço da Marina.
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