quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O difunto Nicolau

Autora: Maria Mineira

As velhas cochichavam:
-Credincruiz! Difunto se rindo é coisa do Demo!
Pois naquele velório ninguém atinava o motivo do risinho indecoroso, assim mei de ladinho, sob o bigode do Nicolau. Houvesse ali um astuto adivinhava seu semblante de puro contentamento e deleite.
Abatida, se via Manuela ao lado do marido Ludgero. Passaram a noite em claro, velando o corpo do boiadeiro Nicolau Simão. Noutro canto da sala, chapéu no peito, todo contido em si, Joãozinho ali estava, sem coragem de olhar nos olhos dela. Aquele conluio era segredo que levariam para o túmulo.
Na cozinha, as comadres diziam:
-Tadinha da Maneca, num é pra menos ficá abobada assim. O danado do home vei morrê na sala da casa dela. Disséro qui tava isperano o Lugero chegá do sirviço, pra modi niguciá umas cabeça de gado, quando istribuchô e caiu mortim. Num fosse o Joãozin ta pru perto...
Ensimesmada, Manuela lembrava como viera parar ali. Casou novinha, para cumprir gosto do pai, com Ludgero, fazendeiro viúvo, sem filhos e já bem erado. Não gostou nem desgostou. Não fora criada para escolher marido. O começo foi tudo novidade. A fazenda tinha terra que não acabava mais, muito gado e plantação. Com o passar dos anos, ela se viu como um enfeite da casa; uma propriedade do marido ciumento.
Quando entrava na cozinha, onde reinava a velha Sinhana preta só ouvia:
-Sinhô Lugero falô qui num quê muié dele isquentano barriga no fugão e isfriano na bica, não...
Às vezes, queria cuidar do jardim, mas aquele rapazinho acanhado lhe tirava das mãos as ferramentas:
- Patrão num qué a sinhora quemano nesse solão. Sô Lugero falô pa modi ieu num dexá, não. Issu é sirviço meu.
Dezembros e janeiros e a chuva a malhar no telhado por dias a fio. O tempo se arrastava naquele fim de mundo. Debruçada na janela, ela avistava o cafezal onde as pessoas pareciam formigas trabalhando. Via Joãozinho a cuidar dos arredores da casa. O rapaz era peão de confiança do seu marido, parecia que estava ali o dia todo vigiando, contando seus passos... Ou era só cisma sua?
Um dia cedinho, depois que Ludgero saiu a campear um boi sumido, Manuela botou vestido bonito, aquele que tinha dois botõezinhos teimosos em morar fora da casa, revelando um tiquinho dos seus guardados. Se abeirou do curral.
Toda prosa, trepou na cerca, caneco na mão; pediu que Joãzinho lhe desse leite da formosa, -a melhor vaca do curral- o peão encabulado, rosto amoitado no chapéu de palha, custou a lhe cumprir a ordem.
Foi nesse dia, que Joãozinho sentiu num leve roçar de dedos, o calor da mão dela. Escabreado, afastou depressa a sua. Aquilo foi brasa a lhe queimar mão, braço e todo corpo. Daí por diante, madrugava para que a patroa não o achasse mais no curral. Deixava cedinho o balde de leite na cozinha, com a Sinhana preta e sumia no mundo a caçar serviço longe das vistas dela.
O fim do sossego de Joãozinho foi quando o boiadeiro Nicolau Simão, danou a rodear a casa, depois que o patrão saía. Piorou quando o viu entrando para um café a convite de dona Manuela, que se animou por demais com aquelas visitas.
João perdia noites de sono cismando:
-O qui fazê? Falá das visita ao Sô Lugero? Não! Isso nunca! Ele dava cabo da vida dela, tadinha... E se ela num devesse? Ele ia morrê de remorso.
De mãos atadas viu o outro se adonar aos poucos das horas ociosas da mulher do patrão, que se estendiam tarde adentro sempre que ele não estava em casa.
Criando coragem foi indagar a Sinhana preta, na esperança de ouvir alguma coisa que o tirasse daquele desatino. Em vão! Ela deu de ombros, pois estava com pressa a cozinhar uma canjica para o Sô Nicolar, a mando da patroa.
Aconteceu numa tarde quando nem os passarinhos cantavam. Joãozinho ouviu um berreiro vindo da casa. Largou a enxada no chão e correu para acudir. Entrou às pressas sem bater, foi pra donde vinha o choro da patroa.
O que se passou naquele quarto o atormentou pela vida afora... Viu esparramado na cama, o corpo gordo e nu do boiadeiro, na mesinha, um prato com vestígios de canjica. Olhou ao redor; lá estava ela como veio ao mundo. Por respeito, pelejou pra não olhar, mas suas vistas não obedeceram. No desespero Manuela não tivera pudor de cobrir-se. Seus olhos se cruzaram e falaram por si. Sentindo ciúme, vergonha e medo, João começou a ajuntar rapidamente as tralhas do morto.
O tempo urgia. Tinham muita coisa a fazer...

Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=86838


Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE

Publicação autorizada pela autora

3 comentários:

Carlos A. Lopes disse...

Minha cara Maria Mineira, adorei seu texto. Repito o dito em sua página no RL: ¨Texto enxuto,movimentado e inteligente¨. Acrescente: A gente vai lendo e tendo a sensação de que não acabe rápido.

João Carlos Hey disse...

Maria, Parabéns. Você está ampliando seus horizontes. Já conhecia o causo, que é muito bom, assim como são todos os que você escreve com essa deliciosa mineirice. Um abraço.

gam538 disse...

Não é à toa que Maria faz o sucesso que faz com seus contos bem narrados. Quem é que resiste a uma leitura desta? Aplaudindo e lhe dando mais uma vez os parabéns! Abraço da Marina.