Autora: Michele Calliari Marchese
Todo mundo ficou apavorado quando viu a Dona Elvira grávida. É que ela já tinha seis filhas mulheres e a vinda de um sétimo filho que fosse homem aterrorizava sobremaneira. É que nesses casos é certo e notório tratar-se de um lobisomem.
Os meses passaram numa lentidão nunca sentida antes
em todos os cantos da cidade, a apreensão quanto ao nascimento daquele filho
era comentado inclusive na missa das oito. A única pessoa que não atinava com o
que estava acontecendo era a própria Elvira que dizia que filho é filho e não
se pode desmerecer e tampouco refugar. Amava-o desde o dia que soube estar
grávida e fosse ele lobisomem ou não, era o seu filho. E talvez que viesse
outra menina e a turba calaria, decerto.
Mas acontece que as premonições quanto ao sexo do
bebê se confirmaram no dia que a parteira saiu fugida da casa da Elvira depois
do parto. “Cruz credo”, ela dizia, se benzendo e falando para quem quisesse
ouvir que era macho aquele nascido e fez coro às lamentações das beatas mais fervorosas.
O padre não acreditava nessas lendas e acalmou os
pais, fez o batismo como sempre fez com todos os filhos daquela vila esquecida
por Deus e abençoou aquela alma já rechaçada. E não perdoou ninguém em seu
sermão na missa do dia seguinte.
Oras, a maioria se arrependeu de ter desdito o
pobrezinho que só sabia mamar e dormir no seu sono de bebê. E muitas mulheres
foram visitar a Elvira levando mimos e roupinhas bordadas ao pequeno que se
chamava Lucas, em homenagem ao apóstolo preferido do pai.
A infância da criança transcorreu normalmente e
ninguém mais lembrava que ele era o sétimo filho daquele casal, mesmo porque a
Elvira teve mais dois filhos depois dele e todos varões.
Exatamente no dia em que o Lucas completara treze
anos, aconteceu uma morte pavorosa: o Genivaldo estava morto em frente à capela
e tinha morrido decerto daquela mordida no calcanhar que todo mundo viu.
Espumava aquela ferida medonha e enterraram o dito justamente no momento que o
Lucas assoprava a única vela do bolo.
Ninguém se apercebeu que aparecia uma morte por mês
e sempre na primeira sexta-feira de lua cheia e o morto morria com uma mordida
nas pernas ou nos pés. A coisa começou a ficar assustadora pois que poderia ser
obra de algum chupa cabra ou de lobisomem.
Logo se acercaram de cuidados e o dono do único
posto de gasolina que tinha ali para abastecer nenhum carro - pois que não
tinha nenhum naquela erdade – achou também que poderia ser trabalho de jagunço
doente.
Era muito comum o aparecimento de jagunços pela
Campina dos Bodes Ausentes, de modo que não seria de todo impossível que algum
estivesse fora das ideias e resolvesse matar a Deus dará, por maldade mesmo. O
povo resolveu de comum acordo armarem arapucas pela estrada, soltarem os
cachorros durante a noite e se revezarem nos cuidados com a segurança de todos.
Foi a Elvira que notou o sangue no meio da roupa
daquele sétimo filho, aquele que todos falaram ser um lobisomem antes mesmo de
nascer. Os outros esqueceram, ela não. Nunca esquecia uma ofensa feita a um
filho e se de fato era ele que matava os outros ela saberia só de olhar nos
olhos dele.
Inquiriu o Lucas a respeito daquele sangue em suas
roupas e embaixo dos tamancos de lida e ele não soube o que responder. Ficaram
se olhando muito tempo até que a mãe estalou os lábios e disse-lhe que fosse
embora para outros sertões e que não dizimasse as crianças pelo amor de Deus.
E então, numa noite quente de lua cheia a casa
acordou alarmada com uivos vindos de fora. Eram tão assustadores que o marido
da Elvira mal conseguiu vestir uma calça e também não conseguia carregar a arma
de tanto terror em escutar aqueles gritos pavorosos. As galinhas cacarejavam
num lamento de morte e em seguida um silêncio assustador. Ninguém queria sair
de casa e a Elvira tratou de contar os filhos presentes. Faltava um. O Lucas.
Pois que o Lucas começou a gritar do lado de fora e
a bater na porta dizendo querer entrar e todos se olharam assustados e se
lembraram da aura triste de lobisomem que aconchegava aquela família como numa
tristeza de velório.
A Elvira deixou o rapaz entrar. Notou em sua
aparência decrépita o sofrimento daquele estado inusitado, pois que estava nu e
tinha muitos ferimentos. Trancou-se no quarto com aquele filho tão amado e só
saíram no dia seguinte, visivelmente transtornados e também porque acontecia o
velório do Tibúrcio, o morto na noite anterior.
Nunca se soube se de fato o Lucas era o autor
daquelas mortes feitas de mordida de cão raivoso, só se soube que ele partiu na
seca mais ferrenha que se teve notícia, para nunca mais voltar. A Elvira
guardou segredo daquela conversa até a morte e partiu com a família para uma
cidade vizinha para esquecer.
As poucas pessoas que ainda restavam naquela
pequena vila partiram para sempre, com o pensamento de nunca terem existido lá
e tampouco levaram os pertences que foram se deteriorando com o tempo e nada
mais foi visto. O que se vê da estrada geral são apenas ruínas das almas
atormentadas pelo uivo incessante do cão.
Michele Calliari Marchese é catarinense de Xanxerê. Formada em ciências contábeis, é contista semanal do Jornal Diário Folha Regional de Xanxerê - SC, mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras e no blog Sem Vergonha de Contar. Participou com contos nos livros UFOs - Contos não identificados e Espectra, ambos pela Editora Literata de SP, do Livro dos Prazeres editado pelo SESC de Santa Catarina e no E-book Quinze Contos Mais pela editora Helena Frenzel.
Michele Calliari Marchese é catarinense de Xanxerê. Formada em ciências contábeis, é contista semanal do Jornal Diário Folha Regional de Xanxerê - SC, mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras e no blog Sem Vergonha de Contar. Participou com contos nos livros UFOs - Contos não identificados e Espectra, ambos pela Editora Literata de SP, do Livro dos Prazeres editado pelo SESC de Santa Catarina e no E-book Quinze Contos Mais pela editora Helena Frenzel.
2 comentários:
Assustam... e muito, as histórias de lobisomem. A maldição faz estrago nas famílias, nas cercanias por onde impera o bicho e na imaginação da gente que voa longe... Até lá pelo sertão por onde andou esse Lucas-lobisomem rsrs... Muito legal. Marina Alves.
Nossa!! Muito criativo! Escrito de um jeito que a gente lê e nem sente que está sendo levado ao final e quando acaba fica a baba... história muito legal, parabéns! Pra falar a verdade eu não queria estar era na pele de quem vai ter de votar só em alguns dos belos textos que li até aqui.
Postar um comentário