sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O que tem de sê

Autora: Alice Gomes

- Como pôde um homem feito Jeremias morrer de morte assim tão besta? Um homem que tinha tudo pra passar dos cem? Que bem comia e melhor bebia, e ainda tinha à disposição médico e farmácia, se precisasse? Que vida mais mansa nem em outra vida podia sonhar em ter? E mais: morrer picado de cobra! Justo ele, cabra criado na caatinga, no lar das ditas cujas, crescido com elas, de couro liso como o delas, que pressentia, pelo cheiro, presença de qualquer bicho peçonhento, justo ele?
Ninguém acreditava que a morte conseguisse arregalar aqueles olhos, sempre apertadinhos e desconfiados, que mesmo feliz economizava o branco e só mostrava o buraquinho preto da pupila para o mundo ver. Mas Jeremias morreu, e de olho arregalado. De susto, surpresa, dor, vai saber o que o matou primeiro. Veio médico, veio padre, veio caixão, flor, terno novo.  A vizinhança velou o corpo a noite toda, Plínio chorou sentido a morte do amigo, D. Jurema não derramou lágrima. Homem não teme peçonha e mulher não desperdiça água, essa é a lei da caatinga. Quando o sol entrou pelas frestas encontrou gente de olhar perdido, sem ânimo para se levantar das cadeiras e se desfazer do corpo, como manda a vida.
- Vamo acabá logo cum isso. O que tem di sê, tem di sê – determinou  Jurema, levantando-se abruptamente da cadeira, onde permanecera sentada e calada por toda a noite, como se continuar ali fosse empecilho para a faxina do dia, ou a roupa para lavar ou comida para fazer.
 Em todos os acontecimentos que se seguiram, Plínio acompanhou-os como mero expectador, embora fosse parte atuante: as mãos numa das alças do caixão, a descida à cova, o gesto simbólico do punhado de terra, o abraço de filho ao amparar D. Jurema, a volta a casa... O entorpecimento não se deveu ao grau exacerbado da dor pela perda do amigo, mas à lembrança do gesto decidido de D. Jurema, naquela manhã. – “Vamo acabá logo cum isso”.  De fugas e renúncias ele sempre entendera, mas do levantar-se de uma cadeira para enterrar um companheiro de longa data era força da qual não possuía parâmetro até aquele momento. Em todos os minutos do dia não desgrudou os olhos daquela mulher que aprendera a amar como sua segunda mãe. E em certos momentos até se lembrava da sua verdadeira, quando do dia em que a ouviu dizer que estava se divorciando do marido para ir viver a sua vida, e foi. As palavras foram outras e as circunstâncias eram outras, mas não sabia por que, via a mãe, agora nordestina, pobre, inculta e decidida: - “o que tem di sê, tem di sê”. 
Nem toda a viagem que fez ao redor do mundo, nem todos os livros que leu, nem as mais variadas formas de pobreza que testemunhou; nada lhe ensinou tanto quanto aquele levantar-se abrupto de D. Jurema. Aos poucos, a lembrança de muitos acontecimentos de sua vida tomava significado outro, vista agora sob a perspectiva de gente se levantando e fazendo o que deve ser feito. Todos os habitantes de Brejo Santo, que se foram, fugindo da pobreza, levantaram-se um dia das suas cadeiras e foram morrer em outro lugar, e agora Plínio os podia ouvir: ” Vamu acabá logo cum isso”. E podia entender melhor agora os que ficaram, os que a pouco lhe ajudaram a enterrar o amigo e que até hoje eram os seus companheiros de paz naquele lugar esquecido do mundo. Aqueles talvez carregassem, como ele, suas cadeiras de vida grudadas nos fundilhos, Sim, agora podia entender ao menos uma das razões dos que ficaram, mas e D. Jurema? Se ela era assim, tão endurecidamente desapegada de sentimentalismos, por que permanecera ao lado do marido todos aqueles anos? Se ela o amava, não poderia afirmar (agora se recorda de nunca ter visto demonstração íntima), mas era fato por ele diversas vezes comprovado que o respeitava e o obedecia, sem pestanejar, nos mínimos desejos.
- Venha descansar um pouco, D. Jurema. Deite-se e tente dormir, um bom sono vai lhe fazer bem – disse-lhe Plínio, tocando-lhe suavemente o braço.
- Vô sim, meu genro. Agora vô descansá um poco. – respondeu, entrando no quarto e fechando a porta, para só reabri-la horas depois. Ao sair, de banho tomado e semblante mais serenado, portava um saco com as roupas do falecido, e chamou por uma vizinha que lá estava preparando o almoço, e mandou-lhe distribuir a quem as roupas servissem.
Plínio aturdia-se a cada atitude da sogra. – Para que doar roupas usadas a essas pessoas? – pensou entristecido. – E toda a ajuda que lhes prestei esse tempo todo em que moro aqui? Não creio que necessitem. – Mais aturdido ficou, quando a vizinha agradeceu, comovida, e saiu imediatamente, com a trouxa nas mãos. Um frio repentino percorreu sua espinha. Daqueles frios que nos percorrem, na iminência de uma tragédia inevitável. A tragédia foi a de se sentir outra vez fora do seu habitat. Num relance relembrou todos os momentos em que ali viveu, desde o dia em que chegara àquele povoado. Da emoção que sentira ao encontrar o cenário perfeito para viver o seu personagem. Daquelas casas abandonadas, cobertas de mato e solidão, fizera o seu imenso teatro ao ar livre, para seu monólogo cotidiano. Tratara de suprir as necessidades básicas daqueles seres humanos como um humano trata seus bichos de estimação. Revelou-se a si mesmo uma individualidade que nunca pensou existisse. Gostava daquelas pessoas como quem gosta de gatos. E eles, como os gatos gostam dos humanos que os alimentam. Não fazia parte daquele mundo. Nunca fizera. Nunca percebera D. Jurema, antes de aquele levantar-se da cadeira. Ela, sim, sempre estivera viva. Ele não. Ele estava tão morto quanto Jeremias agora. Que realidade era essa que lhe desabava na cabeça? Das histórias que ouviu por tantos anos, dos tempos de fartura, que lhe contavam, nas tardes de sol avermelhado que lhe embalavam o sono, que era aquilo? Eram histórias deles, não sua. Como pode uma pessoa que, deliberadamente, renuncia ao seu passado para embrenhar-se em histórias de vida de outras pessoas, entender o que foram essas histórias? Que sabia ele das escolhas de vida de D. Jurema? Quem era ele para julgar que fosse desapego sentimental aquele levantar-se da cadeira, e não o preparo quase genético para as desgraças da vida, como tinha aquela gente? Gente que até aceita de bom grado o que de bom vier, mas com a certeza que tudo o que é bom é passageiro e é preciso estar alerta para a permanência das perdas.  E ele era o passageiro.
Como um raio, ressurge em sua mente o dia da proposta que fizera a Clarinda, sobre ela ir viajar o mundo, sozinha, pois que ele ficaria bem. Lembrava-se de ter sentido uma sombra de dúvida na sogra, entre acompanhá-la ou ficar com o marido, mas achava que a tristeza fosse somente uma saudade antecipada da única filha.  Nunca se havia apercebido da renúncia tamanha escondida naquele “eu fico”. Nunca se apercebera da enorme diferença entre não ir, e não ir querendo ir. Quantas vezes ela teria sonhado com o milagre de acordar em outro lugar, qualquer um sem este chão de terra batida, sem este mato crescendo ao redor dos seus fantasmas, sem estas casas vazias das amigas que se foram? Quantas noites teria velado o sono solto de marido e genro, enquanto ela, acordada, se lembrava do tempo em que todos tinham os seus empregos, famílias, filhos, e viviam bem, dos seus parcos salários? A quantos amigos deve ter dado adeus, enquanto ela ficava, porque o marido assim decidia? Que respeito! Que respeito pelos que ficam por obrigação a um juramento! A mãe levantara-se da cadeira para se libertar de marido vivo. Ela, para libertar-se de marido morto. Que estranha sensação de alívio deve ser esta, o levantar-se da cadeira para enterrar seus compromissos cumpridos!
- Que direito eu tinha de vir lhe impor que conhecesse dois mundos, sem que o novo não lhe fosse dado? Que direito eu tinha de lhe mostrar como poderia ser? – Plínio se angustiava, enquanto percorria as velhas casas de tijolos quebrados, que tanto bem lhe fazia até aquele dia. - Quantas Juremas e Jeremias viveram nessas casas? – se perguntava. Quantas esperanças lhes trouxeram os donos desta fábrica de caroá, e depois os deixaram ao deus-dará, quando o lucro mudou de cidade? Quantas orações foram feitas nesta igrejinha, para que o divino despejasse alguma bênção comestível? Quantas crianças interromperam seus bê-a-bás nesta escolinha, para irem brincar de esconder sua fome nas ruínas deste posto de combustível abandonado?
Não havia um só lugar que lhe trouxesse algum pouco de paz. Sua cabeça rodava e o estômago doía. E Plínio não sabia mais como encarar D. Jurema e os outros, porque pela primeira vez se olhou como imaginou que eles o vissem, nesses anos todos. – Um alienado! Rogamos por uma fonte de emprego e alguma promessa de futuro e Deus nos mandou um alienado maluco, para nos dar o que comer! Ainda assim, glória a Deus!  - Agradecem, mas continuam a rogar, porque sabem que um alienado em suas vidas é sempre passageiro.
Caminhou lentamente em direção a casa, pois lhe chamavam, aos berros, para o almoço.  – Que susto o sinhô nos deu, Seu Plínio! Nóis pensava que o sinhô tinha tido um treco, sozinho por aí. Sente aqui, que eu já lhe sirvo. – disse a vizinha das calças usadas de Jeremias. – Tome aqui o seu suquinho.
- Sempre bem tratado – pensou Plínio, ao pegar o copo que a mulher lhe oferecia. – Os gatos costumam ser carinhosos, quanto mais nutridos estejam. – Uma dor pungente lhe impediu o rotineiro agradecimento dessas ocasiões. Comeu sem gosto, mas comeu, a ver se a dor no estômago diminuía. Após o almoço, fechou-se no quarto e jogou-se na cama, na esperança de um sono que lhe devolvesse Jeremias, e o dia anterior a este.  Pouco mais de vinte e quatro horas antes, ele era feliz, Jeremias era feliz, D. Jurema era feliz, Clarinda voltaria, tijolo quebrado, e feliz...
- Clarinda! – levantou-se de um salto, ao lembrar-se da esposa. Estava para chegar a qualquer momento. Não pôde chegar antes porque estava no exterior quando soube da morte do pai. A essa altura já nem sabia mais o que pensar de Clarinda, e nem sabia se queria pensar nela.  Abriu a porta e deparou-se com a sogra, aliviada por não ter que lhe acordar para dar a notícia do telefonema da filha:
- Clarinda acabô di ligá do aeroporto de Recife. Daqui a uns trinta ou quarenta minuto estará aqui. - disse, num só fôlego e com os olhos brilhando, D. Jurema, a desapegada de sentimentos. Em outra circunstância, seria a hora de lhe abraçar e comemorarem juntos a volta da amada. Mas não naquele momento. Limitou-se a esfregar delicadamente as costas da sogra, num arremedo de abraço. – Vai o marido, volta a filha, menos mal – pensou consigo.
Foi à cozinha, fingiu um gole de água e voltou ao quarto. Decididamente estava triste, além de confuso. Precisava estar sozinho. Pensou em Jeremias, seu companheiro de todas as horas, homem de poucas palavras, como ele, mas que certamente gostava de sua companhia. Não podia ser só pela ajuda financeira que fazia aquele homem ter consigo tão prazerosas conversas. Não se conta piadas a quem somente lhe sustenta, como ele sempre fazia; não se suspira tão relaxadamente perto de quem só lhe põe comida à mesa, como ele fazia nas tantas tardes, às cadeiras de balanço. Não, Jeremias gostava dele, de verdade. E ele, de Jeremias. Perdera um amigo, talvez o único em toda a sua vida. Mais que um amigo, um seu igual. Alguém, como ele, que não se incomodava com o exterior de nada e de ninguém.  Que aceitava, da mesma maneira, o bom e o mau que a vida lhe oferecia. Só não aceitou a peçonha, que lhe arregalou os olhos. Plínio abre os seus, para afugentar a lembrança dessa dolorosa imagem.
- Perdi um amigo e não ganhei a minha esposa de volta, porque não foi por mim que ela voltou. – constata, resignado.
- Em trinta minutos decidirei o meu futuro. Olharei nos olhos reais de Clarinda e saberei que ela nunca me amou e eu nunca a amei. Ela foi o meu gatinho preferido, a quem ofereci a ração mais fina, e eu me verei nos seus olhos o humano mais gentil que ela conheceu, pois que até a dispensei de ter que roçar o seu rabo nas minhas pernas.
- Agradecerei à D. Jurema pela hospitalidade e o esforço de me emprestar um pouco do seu carinho de mãe e lhe direi alguma das frases que ela nunca entendeu, apenas para não sair mudo de sua vida: - Não nasci para o que ainda é, D. Jurema, e o corpo de Jeremias ainda é carne, mesmo podre, debaixo desse chão. Não há mais lugar para mim aqui.  Deixo-lhe uma boa quantia em dinheiro para que distribua entre os vizinhos e a senhora vá viver com a sua filha, que terá a metade de tudo o que é meu, por direito. Um dia talvez nos reencontremos. Seja feliz.
- E deixarei para sempre este lugar que um dia foi meu, apesar de nunca ter sido. Não me voltarei para olhar essa pobreza, já que a minha não a posso aqui deixar.
Plínio fecha os olhos e tenta dormir, por trinta minutos, tempo suficiente para sonhar que Clarinda o acordará, quando chegar, e lhe beijará a fronte, e chorará com ele a morte de Jeremias, e lhe dirá que já se tornou um pequeno tijolo quebrado pela morte do pai, e este abençoará, de onde estiver, uma nova família que se formará.
- Vamu acabá cum essa tristeza, hómi! O qui tem di sê, tem di sê. Acorde!




Autora: Alice Gomes - Porto Velho/RO

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2 comentários:

Anônimo disse...

Com cara de realidade, numa linguagem das mais bonitas e bem escritas. Parabéns a quem criou esta beleza! Marina Alves.

Maria Mineira disse...

Com certeza esse é um dos melhores! Parabéns a quem escreveu!