Autor: Flávio Cruz
Quem era, o que fazia
ali? De onde tinha vindo? Nada, absolutamente nada, vinha à sua mente. Agora já
doía o corpo todo. As pernas, os músculos das costelas, os braços, tudo. Quando
levantou a mão para tirar o suor do rosto, percebeu que havia sangue nelas.
Assim, seu rosto também ficou manchado de vermelho. Assustado, corria mais e
mais. Finalmente, ao longe podia se ver que as árvores iam ficando escassas. A
paisagem estava mais clara.
Diminuiu a intensidade de
seus passos. Estava andando e dali para a frente só havia uma relva, com
arbustos dispersos. Mais um pouco, estaria perto das primeiras casas que tinha
visto à distância. Ao invés de ficar mais tranquilo, o medo aumentava. Não
podia voltar, entretanto. Sabia que tinha de continuar. Queria se lembrar
pelo menos de seu nome. Nada, absolutamente nada vinha em seu cérebro. Olhou
para seu corpo e viu que havia muito sangue escorrendo.
Andava por uma rua, ainda
era de manhã e não havia pessoas na rua. Queria e não queria encontrar alguém.
Chegou a pensar em bater à porta de algum morador mas desistiu. O desconhecido
também lhe dava medo. Era agora uma avenida comprida. Além de casas, havia
lojas. Havia coisas escritas, mas ele não conseguia ler. Não sabia ler, mas
sabia que aquilo tudo era para ser lido.
Bem lá na frente, pela
primeira vez viu um vulto que vinha em sua direção. Caminhava rápido e vinha
para ele. Quando percebeu que, definitivamente, era com ele que ele vinha ter,
parou bem no meio da pista. De um lado havia uma igreja e, do outro, estava o
fórum. Mais um pouco, à esquerda estava a cadeia.
Depois de alguns longos
segundos, o homem chegou e parou à sua frente. Era bem mais alto que ele. Tinha
uma barba rala, era forte e vestia uma túnica cinza. Tinha também sandálias e
usava um estranho chapéu.
Falou com ele em uma
lingua estranha, que ele não conhecia, mas mesmo assim ele entendeu tudo.
Entendeu que ele havia pecado e daí a razão de sua nudez. Estava ali para
cumprir sua pena, seu destino. Pecado sem perdão, castigo sem redenção. Pensou
em perguntar para o estranho seu próprio nome mas não teve coragem. No fundo,
talvez, não quisesse saber. Sem direito ao fórum e sem direito à igreja, foi
jogado numa cela onde havia apenas um banco. No alto da parede, uma pequena
janela por onde entrava um pouco de luz. As grades não eram pequenas mas
certamente não permitiam que ele pudesse escapar. De nada adiantaria, de qualquer
jeito, pois seria pego novamente. Adormeceu, estava muito cansado.
Quando acordou, percebeu
que muito tempo havia se passado. Olhou para suas feridas. Não mais sangravam,
estava seco e sujo. O corpo já não doía tanto. O silêncio, lá fora, era total.
Devia ter um nome, queria se lembrar. Queria se lembrar do pecado também, uma
vez que o estranho homem o havia mencionado, mas nada lhe ocorria. Achou,
porém, que deveria se sentir culpado e assim o fez.
Dormiu mais uma vez. Um
pouco antes de pegar no sono, sentiu que algo estava crescendo em seu corpo,
principalmente em seus braços e em seu peito. Pareciam penas.
Desta vez dormiu muito
mesmo. E agora estava se sentindo muito diferente. Não se lembrava mais de
nenhum pecado, não se lembrava de nenhuma dor, nem se lembrava do homem que o
prendera. Ele era muito pequeno, podia passar por entre as grades, podia até
passar pela pequena janela. Tinha penas, tinha asas. Era um pássaro
marrom, com peito amarelo e uma cabeça vermelha. Não sabia como tinha vindo parar
ali, mas sabia que era uma ave e que podia voar..
Bateu as asas e voou.
Enquanto voava, não
sentia culpa, não sentia dor, não precisava de um nome, não sangrava. Voava
sobre as casas, sobre as florestas, sobre as águas. E continuou a voar. Era a
única coisa que queria e que precisava fazer. E era isso que ele fazia,
voar, voar, voar...
Autor: Flávio Cruz - Flórida/EUA
Publicação autorizada pelo autor
3 comentários:
Excelente texto, história surpreendente com elementos bem distribuídos.
Uma leitura agradável.
Um texto rico, enxuto e bem escrito, além de atraente.
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