Autora: Marina Alves
Última noite em Tabira. Antes de dormir Isabel acertou com as companheiras de viagem, Mônica e Alice, o horário para seguirem viagem, no dia seguinte: “Melhor que a gente saia antes do meio-dia. São centenas de quilômetros pela frente e não é bom que a noite nos pegue na estrada”. As ponderações da moça tinham suas razões: a rodovia federal que teriam de percorrer de volta para casa era conhecida pelo tráfego intenso e o alto índice de acidentes. E caso tivessem algum imprevisto, à noite tudo seria mais difícil.
Tudo combinado. Antes do
meio-dia as três amigas deveriam dizer adeus ao último ponto da viagem de dez dias
e retornar ao Cedro, cidade em que moravam. Mas no dia seguinte... Os sábios
conselhos de Isabel caíram por terra: Mônica cismou de passar numa feirinha de
artesanatos. Como é que alguém volta de uma viagem de dez dias, de mãos
abanando? Não, não e não! Ia comprar algumas coisinhas. E Isabel sabia: uma
feira para Mônica era zona de perigo. Ela jamais sairia de lá em menos de três
horas, pechinchando preços e enchendo sacolas. Não deu outra. Quando saíram de
Tabira, o sol já descambava no horizonte.
Àquela hora, a rodovia
formigava. Era tarde de domingo e, com certeza, o mundo inteiro tinha resolvido
ir pra algum lugar. O rádio tocava Zé Ramalho e Mônica tamborilava os dedos no
volante acompanhando o ritmo da música. No banco da frente, ao lado dela, Alice
cochilava. Atrás, olhos grudados no horizonte, Isabel tentava calcular o tempo
de luz que ainda teriam. Pouquíssimo tempo...
O resto era com Deus!
Depois da parada no
“Pouso do viajante”, rumo ao Norte, o susto: Mônica avisou que estavam na rota
errada. Errada? Como assim? As placas comprovavam. As cidades indicadas não eram as da rota de volta. O trevo! Tinha sido lá o desvio!
Alice, já acordada, tentava se orientar. Isabel procurava manter a calma,
amenizar a tensão. Pronto! Aquele era um dos imprevistos que temia. E o pior: a
estrada inteira faiscava em faróis acesos. A noite tinha caído densa e negra
como nunca!
Alice sugeriu que
retornassem ao ponto de desvio. Mônica discordou. Achava que o mais sensato
seria seguir em frente. Com certeza haveria outro trajeto, mesmo que mais
longo. O carro rodava agora num trecho tranquilo, sem ultrapassagens ou
cruzamentos com outros veículos. Que lugar seria aquele? Isabel notou um
detalhe que preferiu não comentar: as placas haviam sumido por completo.
Estavam completamente sem sinais. À volta, apenas a noite fechada, o asfalto
sem fim e um silêncio de enlouquecer qualquer um. Uma tensão quase palpável se
fez entre elas: ali estavam, três amigas em passeio pelo Nordeste, numa
aventura inusitada... E assustadora. Consultar o mapa! Foi a ideia de Alice. E
cadê o mapa? Ninguém sabia que rumo tinha tomado. O celular! Alguma informação,
quem sabe... Mas, para a surpresa de todas, os telefones só faziam chiar, nada
mais...
Subitamente, luzes ao
longe! Que alívio! Havia vida por ali.
Mônica tomou uma estradinha vicinal em direção ao ponto luminoso. Quem sabe
alguém pudesse lhes dar outra luz: dizer onde estavam. Alguns quilômetros
adiante, o inesperado: os faróis do carro incidiram sobre um lugarejo em
ruínas! Meu Deus, que lugar seria aquele? E a luz que tinham visto? Por ali não
havia luz alguma, só escombros de velhas construções, mergulhados na escuridão
noturna. De vivalma, nem sinal! E o pior! Mônica avisou que teriam de passar a
noite, ali mesmo. O combustível estava na reserva, seria o mais sensato.
Apavorante! Mas nada a fazer senão tentar dormir.
Aos primeiros clarões de
sol... O povoado-fantasma! Incrível o que as moças tinham diante dos olhos:
cobertos pela hera e pelo mato, restos de antigas edificações. Tudo cheirando à
solidão e desolamento... Isabel entrou sozinha no que parecia ter sido uma
escola. Sobre um amontoado de pedras, o objeto: uma pequena caixa de madeira! Pelas
bordas entreviu pontas de papel amarelecido pelo tempo. Seria uma carta?
Rapidamente, a moça a enfiou no bolso do casaco.
À luz do dia, nenhum
gato é pardo e achar os caminhos é bem mais fácil. Retomando a estrada
principal, depois de uma distância que parecia não ter fim, as viajantes deram
com um posto de combustível. Mônica abasteceu e pediu informações. Ufa! Apesar
de estarem numa rota três vezes mais longa, o Cedro existia! Aquilo era, no
mínimo, reconfortante! O novo trajeto até o destino de origem foi
detalhadamente explicado pelo homem que as atendeu. De alma nova, prosseguiram
viagem.
Pelo começo da tarde, as
primeiras casas do Cedro! Ah, o aconchego do lar! Isabel fechou os olhos e
respirou fundo: tudo tinha acabado bem. Mais tarde, já no conforto da cama, a moça dedicou-se ao
que a consumia de curiosidade: o papel no fundo do bolso do casaco. Enfim,
tinha nas mãos a carta! Quem a teria escrito? Quem a teria deixado naquela
escola em ruínas? Com que intenção tinha sido deixada lá. Pôs-se a ler:
“Meu nome é Dolores da
Cunha, mais conhecida, professora Dorinha. Vim lecionar no Arraial do Caroá, contratada pelo Coronel
Fabriciano Pompeia, Rei do Caroá e de todas estas terras. Homem temido pelo seu
temperamento explosivo e vingativo, o coronel deixou muitas desavenças neste arraial
que já viveu seus tempos de glória. No
começo de tudo, veio gente de longe para o cultivo e beneficiamento do caroá, o
que rendeu ao coronel, fortuna e poder em toda essa região. Todas as ruínas
deste lugar, em outros dias, já foram escola, capela, posto de gasolina, venda,
bar e restaurante. Inesquecível a grande feira aos domingos! Hoje, quem vê todo
esse abandono nem acredita...”
“O casarão mais suntuoso,
agora também uma tapera, era habitado pela família do coronel. Ali, muitas
vezes, ele escondeu dos “macacos”, Lampião e seu bando. Foi ali também, que numa
tarde de outono, quando fui assinar contrato, conheci Armandinho, filho único
do coronel. Foi amor à primeira vista. Mas é claro que não podia dar certo. O moço
rico e a professorinha? Jamais! Descoberto o romance, o coronel fez tremeram as
Terras do Caroá! Os jagunços, a mando do tirano, invadiram a escola. Sem dó,
nem compaixão me arrastaram com minhas tralhas, me soltaram à margem da
rodovia, largada à própria sorte. Inconformado, Armandinho montou seu cavalo e
saiu em disparada. Meu pobre amor ia ao meu encalço. Mas na tresloucada
corrida, a queda fatal! Armandinho não resistiu. Morreu ali mesmo, no meio da
estrada.”
“Tragédia acontecida, o
coronel caiu em desespero, num arrependimento tardio: Armandinho não voltaria
jamais! Tomado pelo desgosto, o velho se entregou à bebida. Dia e noite, no
Catimbau! De lá só saía carregado pelos capangas. Declinaram os negócios. Sem o
comando do patrão, o reinado dos Pompeias entrou em franca decadência. Encurralado,
cheio de dívidas, o Rei selou seu próprio fim, num último copo... Desta vez de
estricnina. Morreu estrebuchando, numa mesa do Catimbau. Era também o fim
do Arraial do Caroá. O povo debandou, o
abandono tomou conta de tudo. E hoje é só essa desolação que se vê nesse
amaldiçoado lugar, perdido no tempo, onde nada mais há de prosperar...”
“Moro no Recife. Estou
velha e só. Sobrevivo modestamente do meu parco salário de professora
aposentada, num casebre da Rua Gama. Jurei amor a Armandinho. De vez em quando
venho aqui, reviver neste lúgubre cenário nossa eterna história de amor. Hoje, deixo
também esta carta, para o caso de alguém
que por aqui passe, querer saber um pouquinho da grande felicidade e da cruel
desgraça que vivi neste lugar, de nome Arraial do Caroá...”
Isabel dobrou com
emoção, a carta de Dolores... Não iria contar o segredo a ninguém, nem mesmo à Mônica
e Alice. Guardaria para si a impressionante história de uma tragédia de amor e
dor, perdida no tempo e nas lembranças
de certo lugar-fantasma. Escondeu no cofre o papel amarelado e um estranho desejo
lhe tomou: voltar ao Arraial do Caroá. Mas sabia que não iria: algo lhe dizia
que jamais encontraria o caminho, uma segunda vez...
Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG
Página da autora:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920
Publicação autorizada pela autora
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