sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Monte Alegre

Autor: JCarneiro

Entre as cidades de Esperança e Santa Cruz, no começo do sertão de Pernambuco, à margem esquerda da BR 232, ficava Monte Alegre. Um lugarejo pouco habitado e carente de meios sociais, mas de agradável beleza. Coberto de árvores e de clima saudável. Tinha pastagem natural e criação de gado, especialmente o caprino, além do cultivo de algodão, mamona e milho. Havia caroá em abundância, espécie de cacto, planta nativa do nordeste brasileiro, cujas folhas produzem uma fibra de boa resistência e durabilidade, utilizada na confecção de cordas, barbantes, redes, linhas de pesca e até tecido. Um ambiente com perspectiva de desenvolvimento e progresso.
Arnaldo Fontino Borges, seu Fontino como era tratado, residente em Recife e proprietário de uma revendedora autorizada de veículos,era um homem alto, magro e moreno. Embora bem sucedido comercialmente e gozando de grande prestígio no seio da sociedade, era de uma simplicidade fora do comum e de uma generosidade a toda prova. Sabia fazer amigos e conservar as amizades. Com grande visão para negócios, estava à frente do seu tempo. Casado com Dona Margarida, mulher calma e bondosa, havendo do matrimônio cinco filhos, três homens e duas mulheres. Vivia para o lar e considerava a família a base da sociedade. Vangloriava-se de sua fidelidade conjugal, mais por amor e respeito à esposa do que por dever e obrigação. Dizi a-se cada dia mais apaixonado por ela, arrematando que os filhos eram o centro de sua vida. Sincero e respeitoso,de uma autonomia incomum,fazia parte de uma estirpe de homens que começam a rarear e tendem a desaparecer.Um exemplo de cidadão.
Seu Fontino, como todo homem de negócio, estava sempre ampliando o patrimônio. Assim é que, diante da aceitação e crescimento da indústria do caroá, veio-lhe a ideia de entrar no ramo. Daí para a concretização do pensamento foi um salto, vendo em Monte Alegre o lugar certo para a realização do plano. Sem perda de tempo, adquiriu ali uma propriedade para a implantação do parque industrial idealizado. Saiu-se feliz na escolha. Aquele era bem o lugar.
Corria o ano de 1946, quando foram concluídos os trabalhos e inaugurado o empreendimento. Faz esses anos todos, mas ainda me lembro de muita coisa, pois assisti ao desenrolar da obra. A empresa recebeu o nome de USINA DE CAROÁ SANTA LUZIA, em homenagem à santa protetora dos olhos e da devoção de seu Fontino, que, por intercessão dela, alcançou a graça da cura de grave enfermidade em um dos olhos, dada como incurável por especialistas na matéria. Um verdadeiro milagre.
A usina só começou a operar quando tudo estava pronto e acabado, passando logo a ser considerada uma empresa de ponta e “no melhor dos mundos”, como diria Pangloss.
Um primor a usina. Era o orgulho de seu Fontino, a vaidade da gente do lugar e a admiração dos que a conheciam, porquanto arquitetada com argúcia e executada com conhecimento de causa e rigoroso planejamento, fatores indispensáveis ao êxito de qualquer negócio.
A usina, com uma equipe de trabalho bem preparada, contava com um corpo operacional de sessenta pessoas, entre operários e administradores. Uma empresa moderna, bem instalada e de uma organização exemplar. Entre as peças que compunham o organismo, destaco: um arruado com cerca de cinquenta casas, em fila única, construídas dentro dos padrões habitacionais modernos, com energia elétrica e água encanada; uma capela para o povo em geral; um posto de saúde apto ao atendimento dos primeiros socorros; uma escola para todos; um galpão para o funcionamento das vinte máquinas desfibradoras; uma caixa d’água e um poço artesiano; um forno e um bueiro para queima dos resíduos das folhas desfibradas do caroá, que não foram aproveitadas na ração para animai s; a casa da prensa, de onde as fibras do caroá em fardos prensados eram transportadas para comercialização; um barracão para venda dos mantimentos à população; a casa de máquinas, com gerador de energia elétrica para as desfibradoras, arruado e casas dos operários; um campo apropriado para estender as fibras para secagem; e, por fim, a casa grande, um prédio elegante e suntuoso, alpendrado e com vários quartos com banheiro para a família dos proprietários e convidados. Do outro lado da rodovia, um posto de gasolina e um hotel edificados e mantidos pela empresa. Santa Luzia era o oásis da região.
A casa grande era o ponto central daquela bela aldeia. A alegria e a felicidade de Fontino, familiares e amigos. Sempre cheia de gente nas principais festas do ano, notadamente Natal e São João. Fontino não se cansava de dizer que os melhores dias de sua vida eram os que passava em Santa Luzia, na doce companhia dos seus, das pessoas queridas e dos operários, a quem os chamava de companheiros de jornada. Teve que abandonar os estudos para cuidar dos negócios do pai que falecera prematuramente, deixando uma numerosa prole. Lamentava não ter se formado em veterinária ou agronomia, ou nas duas. Mas era um homem de leitura. Sentia-se querido, admirado e amado por todos. Era tido como o Delmiro Gouveia do Moxotó. Preferia o campo à cidade, por isso passava mai s tempo em Santa Luzia, gozando do doce encanto da vida campestre, em contacto direto com a natureza. Na safra do imbu, não dispensava uma imbuzada na ceia, salientando que achava a comida mais deliciosa do mundo. Apreciava as iguarias de milho, em especial pamonha e xerém com leite, sem esquecer a macaxeira com carne de sol e manteiga de garrafa. Como sobremesa, não podia faltar a rapadura com queijo de coalho, exaltando seu sabor e sustança. Achava o sertão maravilhoso.
A escrita da usina e seu gerenciamento eram da responsabilidade do competente contador Antônio Salustiano, Salu, amigo íntimo e parente de seu Fontino. Solteirão, vaidoso e mulherengo, possuía uma barata e os fins de semana sempre passava em Esperança, onde matinha uma casa destinada a encontros amorosos. Matinha as contas em dia, com a contabilidade da firma em completa ordem. Era quem respondia pelo expediente da usina na ausência do dono e a representava em todas as atividades públicas e particulares. Calmo e sensato, com bom traquejo social, desincumbia-se bem de todas as tarefas que lhe eram confiadas. Tinha a usina como parte integrante de sua vida, contribuindo muito para o seu bem-estar e desenvolvimento. Era o homem da confiança de seu Fontino.
O barracão era administrado por Henrique Celestino, também da confiança de seu Fontino. Henrique era uma pessoa modesta, mas inteligente e engenhosa, desempenhando o cargo com dedicação e firmeza. Casado, do consórcio houve dois filhos, Josué e Helena, tão irmãos quanto amigos. Lena, como a chamavam, era uma moça alourada, de olhos verdes, meiga e gentil, de uma beleza encantadora e muito querida na comunidade. Dividia o tempo entre a escola, como professora, e a capela, como catequista e zeladora. Era quem promovia as festas religiosas tão do agrado de todos. A população tinha por ela o maior respeito e admiração, e o pai lhe dedicava grande amor e afeição. Era a alma da comunidade. Henrique, natural de São José do Egito, poeta, primo e conterr âneo dos irmãos Dimas e Lourival Batista, afamados violeiros repentistas do Pajeú, ao lado dos não menos famosos Antônio Marinho e Rogaciano Leite, contava com a simpatia do pessoal. Seu Fontino, que apreciava os violeiros repentistas e não perdia uma cantoria, encantava-se com as modalidades de repentes, em especial com “GALOPE À BEIRA MAR”, gostava de conversar com Henrique e de ouvir suas poesias. Oferecia-lhe motes que ele glosava de improviso. Certa vez deu-lhe o consagrado mote: “COMO É GRANDE O PODER DA NATUREZA”, que ele assim glosou:
                      Uma semente que se lança ao chão
                      Por sua própria força nasce e cresce
                      Se multiplica em galhos e floresce
                      E frutifica após a floração
                      Sua ramagem em ondulação
                      Dança e farfalha com graça e leveza
                      Resiste o tempo, vence a correnteza
                      E suporta o furor da tempestade
                      Mostrando pelo dom da Divindade
                      Como é grande o poder da natureza.        
A capela de Santa Luzia, um lugar sagrado para seu Fontino que, embora não sendo um católico praticante, era um homem de fé e crente em Deus. Tinha-a como a coisa mais preciosa da usina, sempre realizando nela atos religiosos, inclusive celebração de Missa, para ele o ato mais sublime  da liturgia católica. Ao lado da capela havia um espaçoso salão onde se realizavam encontros comunitários e festas. Era o ponto mais alegre e divertido da usina.
O posto de gasolina, cujo prédio despertava a atenção de todos pela beleza e elegância de suas linhas arquitetônicas, sobretudo suas colunas e formato, lembrando uma grande cadeira, era o ponto certo de parada obrigatória dos muitos caminhoneiros das estradas poeirentas desse sertão bravio e encantador. E, por fim, o hotel, que era um complemento do posto. Um ajudava o outro. Estava sempre cheio, não só pelo ambiente aconchegante, mas pelo excepcional tratamento que dava aos fregueses, além de servir a comida mais apetitosa do mundo, especialmente buchada de bode, carne de sol e galinha à cabidela.
A USINA DE CAROÁ SANTA LUZIA por muitos anos esteve na crista das notícias econômicas da região, como um empreendimento lucrativo e alcance social. Além do tratamento dispensado aos operários e da forma de vida que lhes era proporcionado, todos eles, nos fins de ano, tinham uma participação nos lucros. Era a antecipação do 13º salário atualmente vigente.  
Porém, como não há bem que sempre dure nem mal que não acabe, o tempo de Santa Luzia chegou ao fim. Pois que, Eduardo, o filho caçula de seu Fontino, estudante de direito, rapaz simpático e elegante, dado a conquistas amorosas, enfeitiçou-se pela beleza de Lena e tanto fez, com promessas e juras de amor, que conseguiu iludi-la e ganhar sua confiança, terminando por desvirginá-la e engravidá-la. Henrique, pai de Lena, pelo respeito e gratidão que tinha a seu Fontino não teve coragem de tratar do assunto com ele nem com o filho, inclusive proibindo Josué de fazê-lo, dando o caso por encerrado. Josué, no entanto, não suportando a dor e sofrimento da irmã, mesmo contrariando a vontade do pai, resolveu entender-se com Eduardo, que o recebeu mal e zombou de sua proposta de casamento. Não há no mundo coisa que revolte mais do que a injustiça e a humilhação. Como na época casos como este só se resolviam com casamento ou derramamento de sangue, para lavar a honra ultrajada e vilipendiada, Josué, indignado, por conta própria, sem ouvir ninguém, assassinou Eduardo a golpes de faca peixeira. Foi um dia de juízo. Estava decretado o fim de Santa Luzia.      
Seu Fontino muito desgostoso com a morte do filho, sem comentar o ocorrido, abandonou Santa Luzia e dela não quis mais saber de nada. Interveio apenas para ordenar aos filhos que nada fizessem contra o rapaz homicida e seus familiares. Sua atitude diante do acontecido define bem o homem que era. Comentava-se que se ele tivesse tido conhecimento do fato, pelo que era e pelo poder que exercia, a história teria sido outra bem diferente. Infelizmente foi assim.
Hoje, de Santa Luzia, só restam apenas lembranças de um passado e escombros de um lugarejo que teve os seus dias de glória.
Quem passa por lá vê um bueiro sem fumaça, um posto de gasolina sem vida e um hotel sem alma. Tudo é silêncio!...

Autor: JCarneiro - Recife/PE

3 comentários:

Maria Mineira disse...

Prosa entremeada de poesia é o que encontramos nessa história de amores e tragédias, Ficção que pode acontecer na vida real. Muito bom!!!

Anônimo disse...

O que o destino traça, o homem não desamarra e aí se cumpriu a sina de Santa Luzia e os atores de conto tão bem costurado. Parabéns! Marina Alves.

Helena Frenzel disse...

O mote da 'grande natureza' me fez lembrar de composição de João do Vale chamada Morceguinho, cantada com Zé Ramalho. Grande João, lá no Maranhão! :-)