quinta-feira, 29 de agosto de 2013

¨Vivalma¨ de Brejo Santo

Autora: Maria Mineira

Em seu leito de morte, vovô acenou-me. Segurei firme sua mão e ouvi pela última vez o som da voz de Augusto Rosa, um homem que aprendi admirar desde a minha infância. À sua cabeceira somente eu, seu único neto. Sem saber ao certo o motivo, prometi visitar Brejo Santo, sua terra natal.
 – Está mesmo decidido meu filho? Fará isso por mim?
Assenti, baixando os olhos. Não havia mais nada a fazer além de cumprir a promessa feita. Iria conhecer o torrão de meus ancestrais.
Estacionei o carro nas vizinhanças do Brejo Santo e num cavalo alugado continuei a minha jornada. O destino era inacessível a veiculo automotor. O mulungu sem folhas anunciava o principio da desolação. O tempo havia parado muito pouco restava da corrutela, que outrora teve seu casario cujo telhado se destacava pela sua formosura, alinhado em ruas maltrapilhas e esburacadas, hoje desertas. Restam somente os escombros das taperas, lares extintos, árvores mortas. Aqui e acolá, os mandacarus arruinados até ao alcance dos dentes dos animais famintos. A paisagem é triste, coisas silentes companheiras de infortúnio. Da torre da igreja, desapareceu o sino que por muito tempo soou convidando a todos para se encontrarem com Deus. E os últimos moradores se despediram carregando tudo aquilo que tinha alguma serventia. O resto foi caindo por si.
Ninguém andava mais por lá, e todo mundo que conhecia a história passava longe daquela região. Se o lugar já era mal afamado nos tempos de Lampião, que diria agora. Nas paredes rabiscadas, em qualquer lugar do vilarejo abandonado, se podia assinalar o lugar exato onde eles estiveram. Era um rastro incorporado há décadas e sem saber o motivo, identifiquei de imediato assim que pisei naquele local. Nos arredores, até onde se avistava, surgiam moitas de espinho em gravetos ressequidos, troncos de árvores, a terra poeirenta em torno, as ruínas das casas desabitadas, donde partia o surdo rumor de choro de crianças, ranger de chaves nas fechaduras emperradas, bocejos, resmungando frases indefinidas, quase imperceptíveis, como se fossem queixumes sobrenaturais.
Segui em frente, tomando a direção das terras da família Rosa. O antigo curral feito de moirões de aroeira se mantinha de pé. Da paisagem secular restavam apenas vestígios. As pedras amontoadas no decorrer dos anos, agora serviam de morada às cobras e ratos. Nos galhos das árvores empoleiravam urubus famintos, nada combinava com o céu, sempre azul, cheio de luz. A tapera que fora a imponente morada do velho Dionísio Rosa, agora tinha fama de mal-assombrada. Suas paredes descascadas, os esteios cobertos de caixas de marimbondos abandonadas; o teto infestado de teia de aranha; o telhado coberto de ervas mortas; as portas emperradas, o assoalho apodrecido, devido longo abandono. Ali tudo estivera sempre fechado havia muitos anos.
Estranhei ter ficado tão poucas marcas dos antigos donos das terras.  Passaram feito nuvem, mas eu senti na pele uma presença em forma de arrepio. As poucas pessoas que encontrei no arraial ali perto, ainda hoje se lembravam de uma mulher famosa pela sua beleza como se ela ainda vivesse e um dia fosse voltar. Fui me sentindo estranhamente preso no emaranhado de fatos que se iam descortinando a minha frente... Nunca havia pisado naquela poeira, e poderia jurar que toquei em cada pedra, que percorri cada caminho, cada trilha, cada curva, como se desde menino tivesse andado por lá, a cavalo a pé, ou no colo de minha mãe.
Não sei ao certo se o calor do dia, ou o sol quente na cabeça me fizeram rumar para o rio que circunda a região. O campo desolado e seco sem rumor de pássaros, num átimo, como se fosse miragem, deu lugar a campina verde úmida de orvalho. As aves em algazarra nos mais altos ramos dos juazeiros frondosos e nas carnaubeiras esguias. Ouvi o mugir das vacas chamando pelos bezerros..., E com o cheiro do pasto florido, dos aguapés na lagoa azulada, sentia a fartura de uma misteriosa e prodigiosa terra.
Hipnotizado, vi na margem do rio um pote cheio de água, perto dele uma jovem se banhava, espalhando e misturando o verde do rio com o azul do céu. Como se fosse a Iara mãe-d'água. Nadava como os lambaris ariscos; mergulhava espantando os passarinhos e as garças que estavam pousados nos galhos próximos.  Quando reparou que não estava sozinha não ousou erguer os olhos, tão confusa e perturbada que estava.
Exposta à luz do sol, a moça saiu do poço, e, de pé, cruzou os braços sobre os seios nus. Rapidamente vestiu uma leve túnica branca que a cobriu e se amoldou ao seu corpo molhado. Equilibrou o pote na cabeça e seguiu a passos rápidos. No sacolejo do andar A água cristalina do pote derramava e escorria pelo seu corpo de curvas sinuosas, provocando arrepios aos fluídos afagos.
Em sonhos ainda sinto a suave fragrância da mulher com a qual acordei no dia seguinte, quando no céu a estrela-d'alva esmaecia, pálida. Ela deixou minha rede espreguiçando-se ao sabor da brisa da manhã, que lhe agitava o traje diáfano com suave carícia. Ajeitou os longos cabelos como se a própria essência de sua beleza evolasse deles. Aos meus ouvidos, chegava o cantar dos galos em alvorada. Sinto o sabor do leite morno que ela me trouxe numa cuia, do pedaço de cuscuz coberto com queijo de cabra derretido. Em meio a uma névoa insistente em meus olhos, ainda vejo aquela jovem trazendo rapadura, mugunzá com coco e coalhada com mel.
E aquela moça fez morada no meu coração, eu a carreguei comigo. Era madrugada e já descíamos para o povoado. Antes, a vi contemplar, com lágrimas emocionadas, o terreiro bem varrido, cada recanto da casa, o pilão, a trempe de pedra, os tições extintos, enterrados sob a cinza. Pela última vez regou o craveiro no jirau. Percorreu com enternecimentos de saudade os vestígios de uma vida que por mim abandonava e dos quais se despedia para sempre.
A estrada serpenteava pela caatinga, vales cortados pelas fendas dos riachos extintos. Vimos se aproximar cada vez mais nítidos, o arvoredo, as manchas nuas dos roçados estéreis, os precipícios tenebroso, os grotões sombrios, realçados, num bronzeado de neblina diáfana.
Cativo em evocações saudosas de um passado morto ressurjo das minhas cinzas e vejo minha adorável criatura na penumbra da memória. Sinto o calor de seu corpo, o doce da boca, a suavidade de suas mãos se desvencilhando do meu peito, sua imagem evanescente na garupa do meu cavalo, através dos campos em flor. Paisagem, fatos, coisas, pessoas queridas, imagens dispersas, passam, confundidos, sós, ou em redemoinhos imaginários, tudo ao longe, num horizonte que se perde entre as brumas como recordações passageiras, vagas, de um delicioso sonho interrompido.



Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG

Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE


          Publicação autorizada pelos  autores

4 comentários:

Helena Frenzel disse...

Um texto 'misterioso', interessante e cheio de belas descricões. Parabéns ao autor ou à autora.

Anônimo disse...

O cenário, os personagens nos arrebata e nos deixa com vontade de saber tudo até o fim. Parabéns ao autor ou à autora. Como eu disse: ótimos textos por aqui! Marina Alves.

Anônimo disse...

Gostei muito do texto. Parabéns!

Unknown disse...

Um relato condizente com a proposta a proposta do coco-urso descrevendo o que realmente ocorreu
no vilarejo!