quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Califórnia

Autora: Ana Bailune

Pisava no chão seco e farinhento da vila de Córrego Seco desde que nascera. Nome mais apropriado para um lugar, não existia. Tudo era tão seco, que até mesmo o carcará tornara-se pássaro raro. Somente os que, como Joana, não tinham outra alternativa, continuavam vivendo ali.
Ela não conhecia outra vida, tendo gasto em seu caminhar, muitas solas de chinelo. De sol a sol, de solo a solo, de cacto a cacto. Sua magreza alongava-se ainda mais na sombra projetada no chão pelo sol escaldante. No alto da cabeça, carregava uma lata d’água barrenta que tinha ido buscar a dois quilômetros da sua casa. Passava pelas ruínas da velha igreja sem notar, como quem passa por uma fé que deixara de existir.
Tinha apenas vinte anos de idade, mas aparentava quarenta. Em fila, seguiam-lhe seus três meninos, aonde quer que ela fosse. O pai? Partira para a cidade grande em busca de uma vida melhor, deixando apenas uma promessa: “Um dia, eu mando buscar ocês.” Nunca mais voltou. Nunca mais deu notícias. Também, que notícia poderia chegar àquela lugar esquecido por Deus?
Joana nem sentia saudades do marido. Tinha antes muitas outras coisas a sentir: fome, sede, cansaço, desesperança, e um medo que crispava-lhe o estômago: o de ver morrerem seus filhos. Todos os dias, chegavam-lhe histórias de crianças que morriam. Às vezes, passava um cortejo na porta de casa, um pequeno bando de gente maltrapilha carregando um pequeno caixão.
Certa manhã, antes mesmo de clarear, Joana acordou com um sobressalto: tivera um sonho ruim. Vira um de seus meninos dentro de um caixão. No sonho, estava em uma sala vazia e escura, onde, bem no meio, havia um caixão cercado de velas. Ela foi se aproximando devagar, com medo do que fosse ver, enquanto ouvia uma risada sardônica atrás de si. Sentiu um arrepio na nuca, e quando chegou bem perto, levou à mão ao peito e olhou: lá estava seu mais velho!
Joana levantou-se correndo, e foi olhar seus meninos, e ao ver que dormiam pesadamente na esteira de palha, deu um suspiro de alívio;ainda não era naquele dia!
Na noite seguinte, teve o mesmo sonho. A única diferença, é que o menino no caixão era o seu do meio. E na terceira noite, o sonho repetiu-se, mas era o seu mais novinho que estava morto. Joana achou que aquilo era um sinal; tinha que sair dali! Precisava ir embora, pois beber água barrenta e comer farinha com lagarto cozido não era vida para menino. Mas ir embora para onde, meu Deus? Não tinha nada, não sabia ler, mal sabia falar direito... e enquanto cismava, andando de um lado para o outro debaixo do sol, à porta de seu casebre, enquanto os meninos comiam feijão com farinha, veio de repente uma ventania; e com a ventania, uma folha de papel, uma página de revista que grudou no seu rosto.
Surpresa, Joana pegou o pedaço de papel e olhou: era uma fotografia, uma imagem de um lugar onde havia um jardim verde e exuberante, cheio de flores coloridas, junto a um rio azul enorme de lindo. Havia também muitas pessoas felizes, e em uma fotografia menor, mesas com toalhas brancas cheias de pratos de comidas que ela nunca tinha provado, e um sorridente homem de branco que era tão bonito, que só podia ser um anjo de Deus! Ela nunca tinha visto tanto verde na vida, nem mesmo na época da chuva! Notou as letras sob a foto, e achou que elas deveriam dizer o nome do lugar na fotografia; decidiu que fosse aonde fosse, era para lá que ela iria! Como? Isto não importava; sentiu sua fé renascer, e da mesma forma que Deus lhe mandara a resposta, também havia de levá-la até o lugar.
Foi até a casa do ‘seu Tinoco’, o único por ali que sabia ler, e entregou-lhe a fotografia. O velho olhou-a, e após seguir as letras com o dedo, devolveu-lhe o papel, dizendo: “Esquece, filha. É longe. Ocês nunca vão chegar lá!” Mas Joana insistiu: “Me diz o nome do lugar, me diz onde é, ‘seu’ Tinoco. O resto, é com nós!” O velho balançou a cabeça, e disse com enfado: “Califórnia. É esse o nome.” Joana nem perguntou mais nada: voltou para casa, e juntando as poucas coisas que tinham, mostrou a fotografia e anunciou aos meninos, que se entreolharam, animados com a sua primeira aventura: “Se apronta, porque nós vai pra Califórnia.” E partiram naquela mesma manhã. Joana nem se deu ao trabalho de fechar a casa. No chão, o vento derrubou a única fotografia amarelada que o marido lhe deixara. ‘Seu’ Tinoco, da porta de seu casebre, viu-a partir em direção ao deserto, seguida pelas três crianças, carregando uma grande trouxa de roupa na cabeça. Ele apertou os olhos, enquanto a imagem dos quatro desaparecia, serpenteando com o calor que brotava do solo.
Meses depois, um homem caminha pelo chão árido de Córrego Seco, dirigindo-se à casa. Traz uma pequena mala de viagem, e muitas saudades e lembranças. Está feliz, pois conseguira arranjar trabalho de jardineiro na casa de um senhor muito poderoso e tão bondoso quanto rico, lá na cidade, no sul do país. Logo que conseguiu o emprego – depois de morar nas ruas, trabalhar em muitos canteiros de obra, sem carteira assinada e receber um salário abaixo do mínimo, passar muita necessidade e até mesmo fome, João - o marido de Joana- finalmente conseguira fugir do lugar onde era mantido como trabalhador escravo. Em sua fuga, acabou indo bater à porta de seu benfeitor, que vendo seu estado emocional lastimável e seu perigoso nível de desnutrição, decidiu acolhê-lo, cuidar de sua saúde e oferecer-lhe trabalho em sua casa.
Assim que ficou sabendo de sua história, deu-lhe dinheiro e mandou que fosse buscar sua família, em Córrego Seco. As crianças iriam frequentar uma escola, e sua Joana poderia ajudar nos serviços de casa.
Mas quando João chegou, não viu sinal de seus filhos e de sua Joana. ‘Seu’ Tinoco deu-lhe as notícias: “Eles foram embora. Pra Califórnia.” Agoniado, João indagou: “Mas... quando?” Seu Tinoco, montando um cigarro de palha, respondeu: “Faz uns mês... foram naquela direção!”
Ao ver que ‘seu’ Tinoco apontava a direção do deserto, João sentiu seu coração encher-se de agonia.
Voltou para o casebre. Deitou-se na esteira de palha semi coberta pela areia, e chorou, desejando do fundo de seu coração, que sua mulher e seus filhos tivessem conseguido alcançar a Califórnia.


Autora: Anabailune - Petrópolis/RJ



Blog: Ana Bailune - Liberdade de Expressão
Postagem: Face
Link: http://ana-bailune.blogspot.com/2012/03/face.html
Powered by Blogger

http://www.blogger.com/ 

6 comentários:

Patricia disse...

Já havia lido o texto, dias atrás. Gostaria de dizer ao autor ou autora que sua criação é de dar água na boca. Lindo! Uma leitura agradável e responsável, uma história triste porém comum e real do nosso povo. É a necessidade X a vontade de acertar. Finalmente gostaria de acrescentar que já li outros textos do concurso e são também de ótima qualidade. Boa sorte a todos!

Anônimo disse...

Este texto me tocou profundamente pela sua realidade,sabemos do quanto essas pessoas são sofredoras. Conceição Gomes.

GraldoRodrizhoje disse...

Me lembrou As Vinhas da Ira de Steinbeck. UM texto bem criativo...

Helena Frenzel disse...

Nossa, que texto lindo! Meus sinceros parabéns à autora ou ao autor. Bem escrito e com uma história muito comovente que prende o leitor do começo ao final.

Maria Mineira disse...

Esse conto é sem dúvida um dos melhores que li aqui! Dispensa palavras. Ele fala por si! Parabéns a quem escreveu a história!

Márcio Buriti disse...

Eu, que gosto de ler e escrever, embora seja simplório o meu escrito, senti-me, à primeira linha de "Califórnia", tal um menino do campo diante de imensa cidade e seu entretenimento. Fiquei maravilhado com "Califórnia", assim como esse menino do campo há de se maravilhar ante as luzes da cidade grande. Ana Bailune sempre ofertou grandes textos.