Autora: Maria Mineira
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Está mesmo decidido meu filho? Fará isso por mim?
Assenti,
baixando os olhos. Não havia mais nada a fazer além de cumprir a promessa
feita. Iria conhecer o torrão de meus ancestrais.
Estacionei
o carro nas vizinhanças do Brejo Santo e num cavalo alugado continuei a minha
jornada. O destino era inacessível a veiculo automotor. O mulungu sem folhas
anunciava o principio da desolação. O tempo havia parado muito pouco restava da
corrutela, que outrora teve seu casario cujo telhado se destacava pela sua
formosura, alinhado em ruas maltrapilhas e esburacadas, hoje desertas. Restam
somente os escombros das taperas, lares extintos, árvores mortas. Aqui e acolá,
os mandacarus arruinados até ao alcance dos dentes dos animais famintos. A
paisagem é triste, coisas silentes companheiras de infortúnio. Da torre da
igreja, desapareceu o sino que por muito tempo soou convidando a todos para se
encontrarem com Deus. E os últimos moradores se despediram carregando tudo
aquilo que tinha alguma serventia. O resto foi caindo por si.
Ninguém
andava mais por lá, e todo mundo que conhecia a história passava longe daquela
região. Se o lugar já era mal afamado nos tempos de Lampião, que diria
agora. Nas paredes rabiscadas, em qualquer lugar do vilarejo abandonado,
se podia assinalar o lugar exato onde eles estiveram. Era um rastro incorporado
há décadas e sem saber o motivo, identifiquei de imediato assim que pisei
naquele local. Nos arredores, até onde se avistava, surgiam moitas de
espinho em gravetos ressequidos, troncos de árvores, a terra poeirenta em
torno, as ruínas das casas desabitadas, donde partia o surdo rumor de choro de
crianças, ranger de chaves nas fechaduras emperradas, bocejos, resmungando
frases indefinidas, quase imperceptíveis, como se fossem queixumes
sobrenaturais.
Segui em
frente, tomando a direção das terras da família Rosa. O antigo curral feito de
moirões de aroeira se mantinha de pé. Da paisagem secular restavam apenas
vestígios. As pedras amontoadas no decorrer dos anos, agora serviam de morada
às cobras e ratos. Nos galhos das árvores empoleiravam urubus famintos, nada
combinava com o céu, sempre azul, cheio de luz. A tapera que fora a imponente
morada do velho Dionísio Rosa, agora tinha fama de mal-assombrada. Suas paredes
descascadas, os esteios cobertos de caixas de marimbondos abandonadas; o teto
infestado de teia de aranha; o telhado coberto de ervas mortas; as portas
emperradas, o assoalho apodrecido, devido longo abandono. Ali tudo estivera
sempre fechado havia muitos anos.
Estranhei
ter ficado tão poucas marcas dos antigos donos das terras. Passaram
feito nuvem, mas eu senti na pele uma presença em forma de arrepio. As poucas
pessoas que encontrei no arraial ali perto, ainda hoje se lembravam de uma
mulher famosa pela sua beleza como se ela ainda vivesse e um dia fosse voltar.
Fui me sentindo estranhamente preso no emaranhado de fatos que se iam
descortinando a minha frente... Nunca havia pisado naquela poeira, e poderia
jurar que toquei em cada pedra, que percorri cada caminho, cada trilha, cada
curva, como se desde menino tivesse andado por lá, a cavalo a pé, ou no colo de
minha mãe.
Não sei
ao certo se o calor do dia, ou o sol quente na cabeça me fizeram rumar para o
rio que circunda a região. O campo desolado e seco sem rumor de pássaros, num
átimo, como se fosse miragem, deu lugar a campina verde úmida de orvalho. As
aves em algazarra nos mais altos ramos dos juazeiros frondosos e nas
carnaubeiras esguias. Ouvi o mugir das vacas chamando pelos bezerros..., E com
o cheiro do pasto florido, dos aguapés na lagoa azulada, sentia a fartura de
uma misteriosa e prodigiosa terra.
Hipnotizado,
vi na margem do rio um pote cheio de água, perto dele uma jovem se banhava,
espalhando e misturando o verde do rio com o azul do céu. Como se fosse a Iara
mãe-d'água. Nadava como os lambaris ariscos; mergulhava espantando os
passarinhos e as garças que estavam pousados nos galhos
próximos. Quando reparou que não estava sozinha não ousou erguer os
olhos, tão confusa e perturbada que estava.
Exposta à
luz do sol, a moça saiu do poço, e, de pé, cruzou os braços sobre os seios nus.
Rapidamente vestiu uma leve túnica branca que a cobriu e se amoldou ao seu
corpo molhado. Equilibrou o pote na cabeça e seguiu a passos rápidos. No
sacolejo do andar A água cristalina do pote derramava e escorria pelo seu corpo
de curvas sinuosas, provocando arrepios aos fluídos afagos.
Em sonhos
ainda sinto a suave fragrância da mulher com a qual acordei no dia seguinte,
quando no céu a estrela-d'alva esmaecia, pálida. Ela deixou minha rede espreguiçando-se
ao sabor da brisa da manhã, que lhe agitava o traje diáfano com suave carícia.
Ajeitou os longos cabelos como se a própria essência de sua beleza evolasse
deles. Aos meus ouvidos, chegava o cantar dos galos em alvorada. Sinto o sabor
do leite morno que ela me trouxe numa cuia, do pedaço de cuscuz coberto com
queijo de cabra derretido. Em meio a uma névoa insistente em meus olhos, ainda
vejo aquela jovem trazendo rapadura, mugunzá com coco e coalhada com mel.
E aquela
moça fez morada no meu coração, eu a carreguei comigo. Era madrugada e já
descíamos para o povoado. Antes, a vi contemplar, com lágrimas emocionadas, o
terreiro bem varrido, cada recanto da casa, o pilão, a trempe de pedra, os
tições extintos, enterrados sob a cinza. Pela última vez regou o craveiro no
jirau. Percorreu com enternecimentos de saudade os vestígios de uma vida que
por mim abandonava e dos quais se despedia para sempre.
A estrada
serpenteava pela caatinga, vales cortados pelas fendas dos riachos extintos.
Vimos se aproximar cada vez mais nítidos, o arvoredo, as manchas nuas dos
roçados estéreis, os precipícios tenebroso, os grotões sombrios, realçados, num
bronzeado de neblina diáfana.
Cativo em
evocações saudosas de um passado morto ressurjo das minhas cinzas e vejo minha
adorável criatura na penumbra da memória. Sinto o calor de seu corpo, o doce da
boca, a suavidade de suas mãos se desvencilhando do meu peito, sua imagem
evanescente na garupa do meu cavalo, através dos campos em flor. Paisagem,
fatos, coisas, pessoas queridas, imagens dispersas, passam, confundidos, sós,
ou em redemoinhos imaginários, tudo ao longe, num horizonte que se perde entre
as brumas como recordações passageiras, vagas, de um delicioso sonho
interrompido.
Autora: Maria Mineira - São Roque de Minas/MG
Ilustração: Edmar Sales - Custódia/PE
4 comentários:
Um texto 'misterioso', interessante e cheio de belas descricões. Parabéns ao autor ou à autora.
O cenário, os personagens nos arrebata e nos deixa com vontade de saber tudo até o fim. Parabéns ao autor ou à autora. Como eu disse: ótimos textos por aqui! Marina Alves.
Gostei muito do texto. Parabéns!
Um relato condizente com a proposta a proposta do coco-urso descrevendo o que realmente ocorreu
no vilarejo!
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