sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Brejo Triste

Autor: Geraldinho do Engenho

Fui convidado pelo amigo Carlos Lopes, para visitar um pequeno vilarejo abandonado, situado no sertão Pernambucano. O Amigo me passou as coordenadas da localidade juntamente com algumas imagens virtuais. Em principio eu tentei fugir ao convite, mas como desde meu tempo de criança na escola, sou fascinado pelo nordeste, acabei não resistindo e aceitei viajar, imaginando que se tratava de uma excursão liderada pelo amigo. Enganei-me não se tratava de excursão, era um desafio.
Fui dormir com o pensamento focado nas imagens que o amigo me passou, cujo cenário mexeu com minha imaginação. Adormeci, mergulhei no sono, e sonhei com uma fascinante viagem ao local. Repentemente estava eu, com uma sacola de supermercado na mão contendo nela apenas uma muda de roupa, de pé à margem da BR 232, contemplando a paisagem deserta, de o tal vilarejo abandonado. Escombros, ruínas, e entulhos espalhados por toda parte, eram o que eu via naquela desolação, sem uma vivalma si quer para me orientar. Percebi logo que as imagens repassadas pelo amigo Carlos Lopes batiam exatamente com aquelas, que estavam ali diante dos meus olhos, não me titubeei. Primeiro porque o amigo jamais iria me jogar numa roubada, segundo por que quem está na chuva é para molhar, e quem não arrisca não petisca. Como sou apaixonado por história, era minha oportunidade de conhecer aquela.
Imaginando o que levaria uma população a abandonar um lugar, que me pareceu tão interessante com uma paisagem bela e convidativa, de encher os olhos de quem transita pela BR 232. Por precaução nem cogitei andar no meio daquela desolação, pisando em falso nos entulhos de suas ruínas. Pedaço de tijolos, teia de aranha, malicia, e talvez até algum animal peçonhento, poderiam ocasionar-me um acidente qualquer. Sentei-me a margem da BR. E aguardei, afinal o dia estava apenas começando, era bem dimanhãzinha quando ali eu me senti um hospedeiro.
Não tardou ouvi balidos de cabras seguidos por gritos de uma criança que as tangiam, vindos em minha direção.
-- Bom dia sinhô, vou só encostar as cabras no pasticho e tou vortano, num minutinho de levo donde meu bis te espera!
--Que papo é esse menino, quem é esse seu bis que me espera, acaso fui recomendado por alguém?
-- Num é prosa não sinhô, meu bis avô na hora quele tá bão da idéia ele adivinha as coisa, ele mandô mainha prepara o café cum tapioca de coco, cuiscuis e queijo de leite de cabra, sinhô já provo desse queijo? Diz que é só na tar da Suíça no extrangero qui se fais queijo iguá! Ta tudo arrumado mode isperá o sinhô, meu bis ta sempre dizeno que logo cu sinhô chegá ele vai conta a historia da vila abandonada todinha, e que essa história vai virá livro na capitar. Mandô ieu ponha as cabra no pasto e levá o sinhô até ele.
--Fiquei boquiaberto com a esperteza e cordialidade do garoto, que num minutinho estava de volta. Perguntei seu nome.
-- Meu nome é Loudigério Pascoal, ma pode me chama de Gerinho, é assim que mainha e vô me chamam!
--Então Gerinho quantas pessoas moram nessa vila?
-- Só nois treis memo, mais ninguém não sinhô, os povo foi se indo imbora de uma a um, restou nois treis, mainha, meu bis e ieu, ma nois é filiz aqui, ieu mais mainha cuida dos bichos, tira leite das cabras fais o queijo, busca água no poço qui restô nas marrecas pra beber e pras prantas mais os bichos.
--Quantos anos têm seu bisavô e como se chama?
-- Hííí muito ano, deixe-me vê o bis foi cumpade de Lampião -, Lampião morreu 1938 painho era afiado dele, painho que falo é meu vô, fio do bis, pai de mainha foi ele que me criô quando mainha ficô viúva qui meu pai de verdade morreu, taveno aquele tronco de arve de baraúna lascada-, foi La que caiu o raio que matou ele, tava lavrano pau mode faze um monjolo, inda tinha fartura de água no brejo qui se chamava Brejo Incantado, a dispois da disgracera qui assucedeu aqui, foi qui mudaro o nome pra Brejo Triste! Meu pai era aparentado do coroné rei do caroá. Ma num sei faze conta direito mió memo é perguntá o vô a sua idade sei qui já passô de um século, sinhô sabe quantos ano qui tem esse tar século.
-- São cem anos, mas o nome dele tu não me disse?
--Ah fico falano pu dimais o qui percisa num falo, ele chama Severino Junqueira Anunciação, Junqueira qui vei do pai e Anunciação de vei mãe, isso ieu sei purquê vejo El ripití pra tudu que gente qui pergunta seu nome. 
O garoto desembaraçado e comunicativo ia retirando os ramos que obstruía a trilha e segurando-os para eu passar no trajeto que seguíamos, e dizendo: -- Hoje memo ieu dô jeito de cortar essa caatinga azarenta aqui da beira tria, já percisava de tê cortado ma as cabras num me dão tempo.
- Descemos uma pequena encosta pouco acentuada que vertia em direção ao brejo.  La estava sentado à porta de sua casinha, num velho pilão aquele patrimônio humano, uma verdadeira lenda viva, fumando seu cachimbo. Cada baforada de fumaça exalava um cheiro agradável, pareceu-me uma mistura aromatizada de balsamo com imburana ou coisa parecida. Calça dobrada até ao meio da canela chapéu de cambaúba do tipo casco de tatu. Sua cabana de pau a pique, caprichosamente rebocada de argila branca, coberta de palha de coqueiro transada na parte interior, uma obra de arte. O terreiro muito liso, de uma brancura sem par, demonstrava o capricho de sua moradora. Roseiras, manacás, manjericão, e dama da noite, floridos e exalando um perfume delicioso.
--Bom dia seu Severino!
--Bom dia seu Francisco seja bem vindo a Brejo Triste-, tava memo isperano pu sinhô!
-- Como assim esperando por mim, e como sabe meu nome?
--Oia seu moço, as dispois cu veio passô de cem anos o veio dorme pouco e sonha muito -, in sonho toma tento do qui vai assucedê nos dia qui vai dibuiano pu mêis afora, num pricisa ninguém avisá, fás tempo qui venho sabeno da sua visita.
--Quer dizer que aqui é o Brejo Encantado-, eu posso até imaginar que o encantado se deve a sua moradia!
-- Qui nada, já foi incantado as dispois da tragédia acunticida, inté a chuva foi simbora, virô Brejo Triste, tudo aqui é coisa sem furmusuza, é tudo naturá!
--Não há nada mais belo que o natural seu Severino, é obra de Deus, que o homem pode imitar, mas nenhum é capaz de criar, e a sua moradia parece uma pedra preciosa ilustrando essa paisagem. Conte-me que tragédia é essa? Gerinho já fez referencia a ela em nossa conversa!
-- Ma antes de nois cumeça no causo qui tu vei sabê, vamo intra na minha cafua, ísabé preparô café cum tapioca mode nois quebrá o jejum, as dispois nois sobe pra vila mode tu cunhecê as ruína e nois apalavriá nesse proseio qui tu veio busca!
Entramos na cabana tudo ali era extraído da natureza moveis e utensílios, tudo artesanais verdadeiras obras de arte. Ai eu compreendi o porquê da família não recuperar uma das casas da vila pra se morar, ali alem de estar perto da pouca água que restava, passava uma paz e uma tranqüilidade imensurável o ar parecia adocicado de tão puro.
-Isabel adiantou-me alguns detalhes, a respeito de sua família, mas por respeito ao seu avô deixou a ele a narrativa principal da história.
--Após o nosso delicioso desjejum, subimos à vila abandonada, a trilha estava limpa, Gerinho havia executado o serviço conforme dissera antes.
--O garoto é tão novinho e responsável assim-, como trabalha bem seu Severino?
- Confeito meu bisneto parece gente grande, ma percisa memo é istudá quem sabe inté se formá num dotô-, ma isso vai tardiá muito, iquanto o véi aqui num fô levado pu Deus, Gerinho mais Isabé num tará liberto. Zelano da forma cus dois zela dieu, minha validade vai demora um mucado mode vencê, ma um dia vence. Ai eze pode se mandá igua todos qui daqui se foro, oia qui é mais de cem almas qui já partiro restô nois treis.
--Talento não lhe falta, e a vocação é a bussola da vida, é uma coisa individual, cada um tem a sua, e cedo ou tarde o sucesso vem através dela. Talvez se o senhor mudasse pra uma cidade daria a oportunidade a ele já pensou nisso?
--Tenho uma casinha no Recife, ma quem diz dele ma a mãe querer mora La, mode istudá, numa larga ieu de jeito maneira.
-Entramos na vila seu Severino caminhava melhor que eu, desviando dos obstáculos.
 -- Bão intonse cumo tu ta veno aqui é o qui restô do posto de gasulina donde inté atomve chegou se vendê, nos tempo dos garimpero qui a Ca passava e muito. La era a posada, da fábrica ficô o buero.
--Na minha terra isso se chama chaminé seu Severino!
-- Coroné inricô ganhô muito dinheiro fico cunhicido cumo o rei do caroá as dispois veio o sisal ele invistiu nele tumem ganho mai dinhero ainda.
--Mas daí a abandonar a vila, a causa deve ser uma história muito triste, uma paixão qualquer ou coisa parecida não?
- Tudo isso e muito mais seu moço, foi exatamente a paixão. Ma foi mulé não! O coroné era dono de grande parte da região do Moxotó pernambucano. Sua riqueza tava ispaida inté pas banda da serra taiada adonde ele mais Vigulino e ieu vaquejava junto no tempo de nois novo, inhantes de Dionísio inricá e virá coroné, e de Virgulino cê capitão e dispois virá o cangacero Lampião--, coroné Dionísio mandava e desmandava nesse sertão, ma as briga constante qui aperriava era pudimais, a famia do home acobô, vitimada do cangaço. Coroné era muito amigo e cumpade de Virgulino, o Lampião. Dava cubertura de suprimento pu seu bando e acabô pagano o pato. Vingaro dele, mode atingir o Lampião. Restô um único fio e um neto, o minino tava cua idade de Gerinho doze anos, coroné quiria cu muleque istudasse mode fazê Del seu substituto.
--Ma uma tarde nas bera do riberão das marrecas, o minino brincava cus culega, coroné tava campiano, quando iscutaro o tropel do cavalo maginaro sê um cangacero qui tava ino, correro mode iscundê, infiaro numa loca de tatu canastra, o neto do coroné tava cum chapéu iguar esse qui tô usano, casco de tatu.
Coronè quando apercebeu a búia, maginô cê um bando de tatu atirô na cabeça do neto pensano qui atirava num tatu.
Foi à coisa mais triste qui já se viu in todo esse sertão.  A vida do home acabô a dispois dessa tragédia, inté o lampião cu seu bando, qui na época tinha facilidade de iscapá da perseguição da puliça, ponhô luto. Pur causa desse aconticido mudaro o nome e ponharo o nome aqui de Brejo Triste.
Coroné abandono tudo e sumiu pra capitar nunca mais vortô in Brejo Triste. O fio do coroné qui tumém era afiado do lampião, disgostoso num acumpanhô o pai, ma num quis mais sabê de nada, intrô pru bando do Lampião, e morreu imboscado junto cu seu padrinho in Angicos pra banda de Sergipe.
Até uns trinta anos atrais a vila paricia qui ia sigui infrente, a fábrica acabou, ma passava muita gente puraqui atrais da sorte no rumo do garimpo, inda tinha iscola celebração de missa, minino correno e brincano na frente das casas chegaro inté vendê atomove purai. Teve fera vendeno de tudo qui se consome. Ma dirrepente foro se indo imbora de um a um. A missa qui se celebrava foi se iscassiano, iscola num tinha mais a seca foi aperriano cada veis mais. Das mais cem almas restô ieu mai isabé e Gerinho. E as ruína na igreja os resto de santo quebrado, no hoter donde lampião chegô a posa cu seu bando, só hospeda curuja e murcego.  Tu veje o qui restô do posto de gasulina, e diga cum quê ta paricido?
-- Parece uma cadeira gigante seu Severino!
-- Tu acertô é isso memo seu moço... Ficô cunhicida cumu cadera do rei do caroá, homenage ao coroné! In noite de lua cheia quando cai na sexta feira, Lampião vem sentá nela pra mode contemprá o sertão donde ele foi vaquero antes de cai na garra do diabo e virá o cangacero fora da lei!
Como assim seu Severino, se fosse o coronel, o qual o senhor diz ter sido o dono de tudo isso, mas Lampião?
--Lampião sim sinhô, ieu já vi muita vez ele de tamanho gigante sentado La cum seu rifle alumiano cu reflexo do luar!Tu quereno comprová, percura uma sexta feira qui tivé lua cheia, e vem mode nois dois cunversá cuele!
-- Muito obrigado ao senhor pela hospitalidade e pela Historia fantástica que me contou, mas conversar com quem já morreu, ainda mais com centenas de mortes nas costas, deixaremos para meu amigo Carlos Lopes, que me recomendou a procurá-lo para este papo tão agradável, ele sim, que é especialista em dominar assombração, poderá acompanhar o senhor nessa aventura sobrenatural!
Em seguida eu acordei mais suado que tampa de marmita no canto do fogão de lenha em pleno verão!


Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG


Publicação autorizada pelo autor

4 comentários:

Patricia disse...

Parabéns ao autor ou a autora pela criatividade ao compor este texto. O autor se divertiu com o convite e com os fantasmas do lugar. Bem pensado e acabou construindo um dos melhores textos do concurso. Adorei, se votasse daria nota 1.000.

Anônimo disse...

Aqui, imaginando esse casebre de terreiro limpo, cercadinho de manacá, manjericão e cheiros que ajudam na condução da imaginação. A figura do "contador" também muito bem construida. Estive por aí com o autor ou com a autora! Marina Alves.

Helena Frenzel disse...

Até lembrei daquele arquiteto que morreu com 104 anos e algumas palavras do velho me fizeram lembrar do interior do Maranhão. Pois num é? Lampião, que inda tá muito vivo e bulindo por esse sertão :-) Saudações ao autor ou à autora.

Maria Mineira disse...

Esse aí me prendeu a atenção do começo ao fim! Gostei muito! Parabéns a que escreveu!