sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Desencantos de um vilarejo

Autor: Geraldinho do Engenho

Houve um tempo em que a comunicação, e a interação social, com objetivos comum, comercial, profissional ou até mesmo cultural, se limitavam a poucas oportunidades. No sertão as péssimas condições das vias de acesso, acrescidas a precariedade do meio de transporte, foi o empecilho que mais contribuiu com exclusão do sertanejo. Emperrando o desenvolvimento social, e aniquilando o caboclo. Enfraquecido financeira e até fisicamente, ele se transformou em um retirante sem rumo migrando-se em busca de sua sobrevivência. Ocasionando a formação das favelas, que são verdadeiras coroas de espinhos, no entorno periférico das grandes metrópoles. Despreparados para enfrentar um novo ciclo de vida profissional fracassaram.  Este fator somado ao tardio progresso às longinquas áreas rurais, extinguiu muitos povoados, espalhados Brasil afora, este nosso gigante colosso, com sua dimensão continental. Poucos foram os vilarejos que sobreviveram a esse caos social. Beneficiados pela proximidade geográfica limítrofes, com o centro urbano mais populoso, alguns conseguindo até se emancipar, com o privilégio em se tornar cidade dormitório, cujos moradores passam o dia trabalhando nos grandes centros, e retornam a noite e nos fins de semanas para o aconchego de seus lares. Uma socialização cultural contribuindo de certa forma com a melhoria de vida da população, fator este que acabou atraindo à migração em massa dos sertanejos.
-- O objetivo desta minha prosa era descobrir o motivo que levou a população, a abandonar um prospero povoado no sertão pernambucano, situado a margem da BR 232. O conheci através do milagre da internet, cujas imagens de suas ruínas, me foram repassadas pelo amigo Carlos Lopes, um pernambucano preocupado com as questões socioculturais dos seus conterrâneos. Carlos Lopes é um ícone da cultura brasileira.
O vilarejo em questão tem  um nome que de certa forma  é até pitoresco: (Salto da Rã) copiado de uma grande propriedade, que leva o mesmo nome, local onde um trágico acontecimento ocasionou o abandono e ruína deste povoado, que teve tudo para se tornar uma grande e prospera cidade. Segundo a narrativa de um retirante ex-habitante do local, que o acaso colocou em meu caminho ocasionalmente quando jogávamos conversa fora.  Retirante este que se tornou jornalista.  Segundo sua narrativa, tudo começou com o dinamismo de um prospero fazendeiro cheio de boas intenções.
Salto da Rã é o nome desta sua fazenda, que foi muito produtiva, com vastas áreas em lavouras de subsistência e pastoris, com um volumoso plantel de animais. Muitos empregados. Seu proprietário um homem bom de grande coração. Em contra partida a esposa era o demônio em pessoa. Quem mais sofria com a situação era a cozinheira da casa grande, que teria que conviver com ela, por quase vinte quatro horas por dia.
Viúva mãe de um filho único, cujo pai morrera acidentalmente vitimado por uma descarga elétrica, provocada por um raio. Neco seu filho, tinha a mesma idade de Juarez filho dos patrões. Sempre juntos, eram como carne e unha, inseparáveis. Correndo como dois vitelos no vigor de sua puberdade. Os dois garotos viviam uma infância feliz, o único empecilho era a patroa que nutria um ódio violento pelo filho da cozinheira. O riozinho que cortava a fazenda ao meio, aonde as arvore desenhavam formas variadas sombreando suas margens, era o local preferido dos dois amigos, que todos os dias, corriam a deliciarem o frescor de suas águas puras e cristalinas. Que rolavam numa ânsia de mar doce, absorvendo o límpido azul do infinito espelhado em seu leito de forma exuberante, contracenando com o malabarismo do cardume de lambaris, que disputava cada inseto e cada frutinha que o vento lhes atirava roubadas na bela paisagem.
Seu Joaquim optou pelo cultivo do curoá, foi bem sucedido e decidiu montar uma grande fabrica de beneficiamento desse produto, suas lavouras se expandiram, gerando centenas de empregos, houve uma significativa melhoria de vida para o sofrido sertanejo nordestino, que em sua maioria derramava seu suor, sem obter sucesso tentando a vida na garimpagem. Com o seu empreendimento Seu patrimônio cresceu e a fábrica também, exigindo mais expansão no cultivo do caroá, que com o tempo foi substituído pelo agave e o sisal. Generoso seu Joaquim foi dando oportunidade aos seus empregados com a participação nos lucros de sua empresa. Não tardou e uma pequena vila se formou.  Poderia ter vindo a ser uma cidade cuja fábrica, foi à semente lançada por seu proprietário à margem daquela rodagem de terra que dava acesso ao Recife. O povoado já contava mais de cem almas, que conviviam em paz e harmonia.
Associados ao seu Joaquim montaram restaurante, hospedaria, posto de gasolina, até veículo, chegou a ser comercializado. Uma feira livre onde se vendia de tudo que a população consumia, também atuou com sucesso. A escola que antes funcionava na sede da fazenda, para maior comodidade dos habitantes, foi transferida para a vila, tudo isso patrocinado por aquele homem de coração de ouro. Que preocupado com o lado espiritual do seu semelhante construiu um belo templo católico, aonde foi consagrado como padroeiro do vilarejo, (São Joaquim) a pedido dos habitantes, uma forma carinhosa de homenagear o fazendeiro pelos benefícios a eles proporcionados. Com o mesmo nome de sua fazenda (Salto da Rã). Tudo ali corria bem com prosperidade e desenvolvimento. Mas infelizmente os inocentes pagam, pelos pecadores. A maldade de Bárbara esposa do fazendeiro jogou o destino contra ela própria, e contra todos que dali tirava seu sustento.
Pelo patrão Néco poderia acompanhar a mãe vivendo Junto á ela na cozinha da fazenda. Mas perante o radicalismo da esposa nem cogitava tal fato. Alem de má era invejosa ao extremo, o ódio pelo filho da empregada, aumentava a cada dia, se quer ela permitia, a ele, se aproximar da mãe no trabalho. Os míseros trocados recebidos pela cozinheira mal davam para vestir e alimentar o filho.
Quando o alvor da aurora manchava de escarlate o horizonte, a pobre cozinheira beijava seu filho e rumava para o trabalho voltando altas horas da noite, sempre de mãos vazias. Toda alimentação que generosamente o patrão liberava para ela levar ao garoto, a patroa tomava em suas próprias mãos e atirava aos cães da fazenda. A pobre mulher se lamentava, rogava a Deus por dias melhores, e ainda assim agradecia por estar viva.  Esperançosa não se abalava em sua fé.  Quanto mais ela tentava afastar o filho do amigo, mais crescia a amizade entre ambos.
Neco apesar de mal alimentado tendo que completar sua refeição, com as frutas de época, e de sua pequena horta doméstica que ele mesmo cultivava, tornava-se a cada dia mais robusto. Enquanto Juarez acometido por problemas respiratórios se definhava, Neco com seu vigor causava inveja à patroa. Um incontrolável desejo de vingança foi aos poucos hospedando o coração da víbora. Como se Néco fora culpado pela moléstia do seu filho. Periciado pela mãe Juarez, foi terminantemente proibido de aproximar do amigo.
Juntos freqüentavam a escola, com a víbora monitorando o horário de sua chegada. Mas a amizade entre ambos só não era maior que o ódio da bruxa malvada. Ao término da aula, em cujo povoado ficava a três quilômetros da fazenda; Juarez passava á casa do amigo só chegando à sua casa à noite. Aumentando assim Ira da mãe. Certo dia fora ela ao encontro do filho. Assustado Neco quis fugir. Fingindo amabilidade ela o convenceu a seguirem juntos, dizendo estar arrependida de seu comportamento. Que a partir daquele momento queria ver seu filho feliz. E que por serem tão amigos Néco aguardasse, Juarez iria com a mãe até a casa, e lhe traria um bom pedaço de bolo, como prova de sua reconciliação.
Feliz, Neco aguardava em seu pobre casebre pela volta do amigo, enquanto isso fazia seu dever escolar, não redava os olhos da estrada na expectativa pela volta do amigo com o bolo prometido por Bárbara. De volta ao casebre, Juarez faminto, era tentado pelo cheiro do bolo, afinal desde manhã não se alimentava, mas aquele era do amigo conforme recomendação da mãe. O seu estava reservado quando voltasse. Acabou não resistindo, imaginando que com certeza, o amigo dividiria com ele aquele delicioso petisco com o maior prazer. Começou por uma biliscadinha aqui, outra ali, de repente metade do bolo tinha sido devorada.
Já preocupado com a demora do amigo, Néco permanecia com os olhos voltados para a trilha que ligava seu casebre à fazenda, mas nada do amigo. A tarde caía rápida coberta por um intenso nevoeiro. Preocupada com a demora, a mãe saiu à procura do filho encontrando-o pela metade do caminho, caído sobre a faisqueira do bolo, espalhadas pela trilha. O mortífero veneno destinado ao amigo dera cabo de sua vida. Completamente louca, a patroa foi internada pelo marido em um hospício em Recife. Vindo a falecer meses após, clamando pelo nome do filho.  Seus restos mortais foram transladados para o vilarejo, onde ela foi sepultada, ao lado de seu filho Juarez, no pequeno cemitério construído por seu esposo.
Certo tempo tudo correu com normalidade, mas seu Joaquim se enclausurou em sua fazenda, e nunca mais botou os pés na vila. Desanimados pela falta de sua liderança os moradores começaram migrarem para outras cidades da região, dando inicio a desertificação do vilarejo, que já vinha sofrendo a conseqüência da forte seca que assolava a região.  A coisa se agravou mais ainda quando os moradores começaram ouvir lamentos vindos cemitério situado colado à igreja, ao fundo. De inicio não deram muita importância imaginando serem berros das cabras, mas a coisa foi agravando cada vez n mais. Ninguém mais dormia a partir da meia noite. Reunidos a busca de uma solução decidiu contratar Zé do Seridó, um conterrâneo de Carlos Lopes, que se dizia ser um arrequeredor de assombração. O homem veio pra tirar a limpo o boato que aterrorizava os moradores. E conseguiu, de fato era mesmo um cabra macho.
De plantão nas proximidades do cemitério, quando o relógio da igreja deu a décima segunda badala anunciando a meia noite ele ouviu uma voz repetindo inúmeras vezes: --Nééééco! A voz veio em sua direção, ele correu até o bueiro da fábrica, escondendo por traz dele.  Viu quando um a mulher que viera pela estrada da fazenda Salto da Rã dentro de um circulo de fogo que iluminava mais ou menos dois metros ao seu redor, arrastando correntes, e conduzindo nos braços uma criança que parecia estar morta com a cabeça, perna e braços pendurados, e de sua boca escorria sangue em grande quantidade, confuso ele a acompanhou com os olhos, pode ver quando ela saltou sobre o muro do cemitério e deu o ultimo Gemido: Nééééécoooo!  Ele não teve peito para requerê-la. No dia seguinte os moradores puderam comprovar que realmente o Zé não mentiu na direção indicada por ele uma trilha de sangue na poeira, e rastos de dois objetos possivelmente duas correntes arrastadas por alguém. Seguiram as marcas elas passaram sobre o muro do cemitério e só terminaram na sepultura da megera que matou seu próprio filho, ao tentar contra a vida do pobre Neco. Apavorados os moradores foram se mudando de um a um pouco tempo depois somente meia dúzia de gatos pingados permaneceram morando na vila.
Tônia a cozinheira, mudou com o filho para Recife, mais tarde para o Rio de Janeiro. Néco foi ser jornaleiro, percorrendo os bairros da cidade, a gritar: olha o “jornaleiro”... Estudou formando-se em jornalismo.
Trinta anos mais tarde voltou à fazenda Salto da Rã, em busca de suas origens, para escrever sua própria história. Encontrou tudo diferente a vila abandonada reduzida a ruínas e escombros, hospedada por ervas daninha, corujas e morcegos.  Nem uma vivalma para contar a história. Seu Joaquim, velhinho numa cadeira de rodas, aos cuidados de uma sua afilhada a quem ele adotou como herdeira em seu testamento.  Na sala do casarão, onde poucas vezes, ele teve permissão para entrar, as paredes velhas enfumaçadas, com fotos de ancestrais petrificadas. Dentre elas, a do casal que em silencio parecia contar a história daquela trágica e sombria tarde que sugou a vida de seu melhor amigo. No local do casebre onde Neco residiu com a mãe, apenas as trepadeiras vermelhas se misturando ao mata pasto, sinalizando sua histórica existência. Somente desolação permaneceu no lugar do perfume das flores, que os dois amigos juntos muito aspiraram. O riacho com seu leito barrento, á sua margem arvore desfolhadas, onde um dia as águas, espelharam as maravilhas da paisagem, um imenso vazio a perpetuar com sua ânsia, mas não de mar doce, somente de lamuria da solidão restou.

Geraldinho do Engenho - Bom Despacho/MG


Publicação autorizada pelo autor

2 comentários:

Anônimo disse...

Arrepiante! O destino com seus dedos ágeis mexeu as peças, encaixou, desencaixou e retornou à maldade personificada seu próprio veneno. Muito bem urdido esse conto. Parabéns ao autor ou autora. Marina Alves.

Maria Mineira disse...

Esse texto é triste, mas bastante poético, reparei nisso.Quem escreveu descreve com muita arte cada linha da história. "Quando o alvor da aurora manchava de escarlate o horizonte.."Gostei muito! Parabéns!!!