sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Serro azul II

Autor: Alberto Vasconcelos

Sentado na espreguiçadeira de lona o velho Zé Ferreira contemplava, com os olhos tristes, as folhas secas da mataria sendo levadas pelo vento, deixando o rastro de som das folhas em contato com o barro seco da estradinha.
Era grande, muito grande a diferença dos dias de antigamente quando Serro Azul era parada obrigatória para todos, tropeiros e caixeiros viajantes, que seguiam, da capital ou de outra cidade mais importante, em direção ao sertão brabo naquele interiorzão seco e carente.
Pelo menos uma vez por semana o pessoal se reunia na casa de farinha para o trabalho que varava a noite e, de madrugada, os carros de boi, as carroças ou os cambiteiros levavam os beijus e as sacas de farinha para serem vendidas nas feiras.
- tantas sacas de farinha fina, com goma, para seu fulano;
- tantas sacas de farinha quebradinha, sem goma, para beltrano;
- tantas sacas de farinha torrada, no ponto, para sicrano...
As conversas dos homens interrompidas, vez em quando, para um gole de aguardente...
As mulheres cantando, às vezes músicas de época, às vezes rezas de devoção...
As crianças, que ainda não tinham idade para a lida, brincando com os bois de barro ou as bruxas de pano.
Nos finais de semana, a igreja lotada para assistir a missa, batizar os bruguelinhos e as visitas dos compadres e amigos, dos sítios, que vinham para a rua comprar de um tudo.
A varanda da casa de seu Zé Ferreira, bem mais alta que o leito da rua, toda lajeada com tijolos vermelhos, servia de vitrine para os produtos do mangaieiro Nonato.
Era faca, punhal, tesoura, freio para animal de carroça, panela de barro, raspa coco, grelha, alcoviteiro de flandres, tiras de couro curtido, fivela, enxada, ciscador, estrovenga... o diacho.
Dr. Raiz armava sua mesinha bem na porta da escola de dona Amélia.
Tinha remédio para todas as doenças...
Banha de peixe-boi e de peixe elétrico diretamente do Amazonas, sebo de carneiro capado, bage de jucá, mel de uruçu, carqueja, imburana de cheiro, extrato de arnica para curar cortes e de aroeira para curar inflamação e as milagrosas garrafadas que curavam de tosse seca até impotência sexual de homem velho.
Mas o tempo passou, os animais foram substituídos pelos caminhões e depois das marinetes e das sopas, ninguém mais viajava em lombo de burro.
Por sua falta de importância, Serro Azul deixou de ser parada obrigatória, o dinheiro sumiu do comércio, a feira foi minguando até desaparecer completamente, a farinha passou a ser importada da Bahia, as pessoas se mudaram e as intempéries se encarregaram de arruinar as casas, a igreja, a casa de farinha, a estrada, a vida dos que insistiram de ficar...

Autor: Alberto Vasconcelos - Recife/PE
  
GLOSSÁRIO:
Alcoviteiro = espécie de lamparina.
Bage = vagem
Bruguelinho = criancinha
Bruxas de pano = bonecas artesanais vendidas em feira.               
Cambiteiro = pessoa que trabalha com o cambito, parte da cangalha destinada a prender cargas.
Cangalha = espécie de sela para transporte de mercadorias.
Mangaieiro = mangalheiro/ vendedor de mangalhos, miudezas.
Marinete = caminhonete para transporte de passageiros com carroceria de madeira.
Sopas = ônibus de viagem.
Uruçu = espécie de abelha nativa, (Melipona scutellaris)

5 comentários:

Maria Mineira disse...

Esse autor tem grande conhecimento dos costumes das falas regionais nordestinas e teve a preocupação de repassar ao leitor o seu significado. Isso só valorizou a história. Gostei muito! parabéns!

Anônimo disse...

Um pedaço do Nordeste por aqui, com toda a riqueza de seus costumes e linguagem regional. A glória e decadência do lugarejo em cena, muito bem caracterizadas. Parabéns! Marina Alves.

Helena Frenzel disse...

Garrafadas milagrosas dessas que curam tudo, bem conheço! Continuando a descrição de Serro Azul :-)

Unknown disse...

Já conhecia o estilo em Encantadores de Histórias e adorei mais esse conto. Parabéns ao autor! Chila Alves

Anônimo disse...

Me lembram os tempos de criança em Igarapé Açu de Cima, povoado perto de Irituia, onde nasci. Meu tinha um pequeno comercio onde ocorriam vendas e trocas de mercadoria. Bosn e saudosos tempos. Conceição Gomes;