sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Totõem trançador de couro e de histórias

Autora: Meire Boni

Totõem  nasceu cego e nunca pode ver a luz do dia. Criança pobre, criada na roça, se adaptou ao mundo, pois a falta de um dos sentidos, fez com que outros se desenvolvessem de forma extraordinária. Para viver, além da aposentadoria trançava couro e transformava-o em belíssimos laços. Cortava as tiras do couro devidamente preparado e prendia-as no dedão do pé e ia trançando. Quatro, cinco,  até oito tiras, dependia da preferência do freguês. Vaqueiros e fazendeiros  vinham de longe fazer encomendas. Totõem tinha até uma lista de espera.  
Mas não era só pelo trabalho com o couro que Totõem era conhecido. Muitos iam lá só para encomendar um conjunto de laços, chegavam, e logo eram pegos pelos seus causos. Tomavam um café, ou uma dose de cachaça e se perdiam no meio das histórias do velho. Quando percebiam o andar das horas, se despediam,  seguiam viagem. Lá na frente se lembravam que  haviam se esquecido de fazer a encomenda e voltavam.
Contava o mesmo causo inúmeras vezes, ma sempre  de um jeito diferente. Mudava o final, os personagens. A única constante em todas as suas histórias era o cenário: uma pequena  vila  às margens da estrada de  Barrossequim. Uma comunidade com várias casas, comércio, igreja  que se tornou famosa por ter sido abandonada por todos os seus moradores,  se tornando uma vila fantasma, habitada somente pelas lagartixas e morcegos. Totõem  conhecia muitas histórias advindas desse lugar, pois afirmava ter nascido lá, e descrevia-o tão detalhadamente, que muitos duvidavam  se a sua cegueira era mesmo de nascença.  
Eram conhecidas várias versões do motivo que veio a fazer daquela vila, outrora com até certa prosperidade, ser abandonada pelos seus moradores, mas não havia mais ninguém  que pudesse confirmar ou desmentir os fatos, pois não sabiam ao certo para onde haviam ido os outros habitantes dali. O único conhecido nas redondezas, que dizia ter morado lá era um velho cego chamado Totõem,  que graças a sua criatividade, atribuía destinos dos mais diversos aos seus conterrâneos.   As hipóteses  levantadas pelo velho iam das mais absurdas como abdução, maldições,  pestes,  até as mais plausíveis como a  seca, conflitos de interesses políticos e religioso e migração em massa.  Como o espírito popular  tende a se interessar  pelo inacreditável, eram as histórias mais absurdas as mais conhecidas. Uma das mais contadas e repetidas era  a hipótese das abduções:
“Seu Totõem, é verdade que o povo daquela vila foi tudo raptado pelos ETS?”
“É verdade sim. Seu Catimbau dono do restaurante foi o primeiro a desaparecer. Eu era pequeno mais me lembro bem daquele dia. Ele ficou no bar até mais tarde, e quem estava acordado naquela noite, disse ter ouvido um barulho estranho vindo lá pelas bandas do morro. Não houve grito, nem nada. Só uma luz. O homem nunca chegou em casa. Dias depois o mesmo barulho, tardão da noite e  foi o rapaz do posto de gasolina, e depois outro e mais outro. Quem restou nem saia mais de casa a noite. Muitos foram embora pra capital. Meu pai queria me mandar pra casa do meu avô, mas não deu tempo.  Uma noite, estávamos todos na cama, e vi meu pai falando que tinha um clarão lá fora, acompanhado de um barulho esquisito,  ele foi lá ver e não voltou mais.   Fiquei em estado de choque e fui encontrado pelo meu avô dias depois. Ele disse que eu era o único que estava na vila. Não havia mais ninguém. Acho que a luz hipnotizava, e eu só fui salvo porque não enxergo. Muita gente que passa por lá a noite diz ver a tal da luz , que ainda aparece lá pelas bandas do morro.”
A história saiu dali e se espalhou. Tanto que batizaram a vila abandonada como Vila dos Ets. Muitos que passavam por lá a noite afirmavam ter visto luzes estranhas. Isso até Seu Totõem decidir mudar a versão.
Outro freguês chegava e a prosa logo chegava ao mesmo assunto:
“Seu Totõem, passei lá na estrada de Barrossequim de noite.  Fiquei morrendo de medo de ver a tal da luz.”
“O povo fala que essa luz existe, eu não posso afirmar nada, como você sabe. Mas acho que não deve ter luz nenhuma.”
“ Mas se não tem luz, pra onde é que foi todo mundo?”
“Você nunca soube da história da peste que prega pelos zóio?”
“Já ouvi falar, mas será que é verdade mesmo?
“Aqui a prova trançando laço na sua frente. Todo mundo morreu, menos eu, porque eu não enxergo. A doença chegou com um caixeiro viajante. E foi passando de um  pro outro, menos eu. Se não visse,  não pegava.”
“Mas se todos morreram, onde é que foram enterrados?”
“ Os primeiros que morreram foram sepultados lá mesmo, no antigo cemitério. Quem ia ficando vivo ia enterrando. Quando o governo chegou queria abafar o caso e recolheu tudo. Os mortos e os moribundos. Meu avô dizia que eles me devolveram pra ele aqui depois de fazer uns exames.”
A história dos “ETs” ficava meio esquecida e agora todo mundo falava em epidemia de “Vê-morre”.  Até o velho enjoar e inventar que todos foram embora por causa de uma maldição.  Quando a história se espalhava, era mudada de novo e de novo. E assim, Totõem  trançava o couro e as mais diversas histórias. Vendia seus laços e fazia amigos, e até hoje quem passa por aquela estrada e vê a vila abandonada se lembra do velho cego e de suas histórias e fica se perguntando qual delas será a verdadeira, ou se nenhuma tem relação com os verdadeiros fatos, ou se todas possuem  seu pé de verdade.  Vá se saber...


Autora: Meire Boni - Bela Vista de Goiás/GO
Publicação autorizada pela autora

3 comentários:

Maria Mineira disse...

Ótima história, narrativa mesclando extraterrestres, cegueira branca e muito mistério. Instiga e prende a atenção do leitor. Parabéns ao autor ou autora do conto!

Anônimo disse...

Trançando couro e fios de imaginação. Aliás, tantos fios que a gente nem sabe em qual acredita mais. Totõem é mestre em contar e brincar com a imaginação de quem ia escutar seus causos. O autor ou autora também brincou com o leitor de maneira espontânea e instigante. Parabéns. Marina Alves.

Helena Frenzel disse...

Outra leitura agradável que me fez rir bastante. Lembrei dos ETs da Campina da Cascavel, uns que gostam de milho todo ano, por isso inventaram as Estações. Gostei muito, 'mandou' muito bem! :-)