Autor: JCarneiro
Entre as cidades de Esperança e Santa Cruz, no começo do sertão de Pernambuco, à margem esquerda da BR 232, ficava Monte Alegre. Um lugarejo pouco habitado e carente de meios sociais, mas de agradável beleza. Coberto de árvores e de clima saudável. Tinha pastagem natural e criação de gado, especialmente o caprino, além do cultivo de algodão, mamona e milho. Havia caroá em abundância, espécie de cacto, planta nativa do nordeste brasileiro, cujas folhas produzem uma fibra de boa resistência e durabilidade, utilizada na confecção de cordas, barbantes, redes, linhas de pesca e até tecido. Um ambiente com perspectiva de desenvolvimento e progresso.
Entre as cidades de Esperança e Santa Cruz, no começo do sertão de Pernambuco, à margem esquerda da BR 232, ficava Monte Alegre. Um lugarejo pouco habitado e carente de meios sociais, mas de agradável beleza. Coberto de árvores e de clima saudável. Tinha pastagem natural e criação de gado, especialmente o caprino, além do cultivo de algodão, mamona e milho. Havia caroá em abundância, espécie de cacto, planta nativa do nordeste brasileiro, cujas folhas produzem uma fibra de boa resistência e durabilidade, utilizada na confecção de cordas, barbantes, redes, linhas de pesca e até tecido. Um ambiente com perspectiva de desenvolvimento e progresso.
Arnaldo Fontino Borges, seu Fontino como era tratado, residente em
Recife e proprietário de uma revendedora autorizada de veículos,era um homem
alto, magro e moreno. Embora bem sucedido comercialmente e gozando de grande
prestígio no seio da sociedade, era de uma simplicidade fora do comum e de uma
generosidade a toda prova. Sabia fazer amigos e conservar as amizades. Com
grande visão para negócios, estava à frente do seu tempo. Casado com Dona
Margarida, mulher calma e bondosa, havendo do matrimônio cinco filhos, três
homens e duas mulheres. Vivia para o lar e considerava a família a base da sociedade.
Vangloriava-se de sua fidelidade conjugal, mais por amor e respeito à esposa do
que por dever e obrigação. Dizi a-se cada dia mais apaixonado por ela,
arrematando que os filhos eram o centro de sua vida. Sincero e respeitoso,de
uma autonomia incomum,fazia parte de uma estirpe de homens que começam a rarear
e tendem a desaparecer.Um exemplo de cidadão.
Seu Fontino, como todo homem de negócio, estava sempre ampliando o
patrimônio. Assim é que, diante da aceitação e crescimento da indústria do
caroá, veio-lhe a ideia de entrar no ramo. Daí para a concretização do
pensamento foi um salto, vendo em Monte Alegre o lugar certo para a realização
do plano. Sem perda de tempo, adquiriu ali uma propriedade para a implantação
do parque industrial idealizado. Saiu-se feliz na escolha. Aquele era bem o
lugar.
Corria o ano de 1946, quando foram concluídos os trabalhos e inaugurado
o empreendimento. Faz esses anos todos, mas ainda me lembro de muita coisa,
pois assisti ao desenrolar da obra. A empresa recebeu o nome de USINA DE CAROÁ
SANTA LUZIA, em homenagem à santa protetora dos olhos e da devoção de seu
Fontino, que, por intercessão dela, alcançou a graça da cura de grave
enfermidade em um dos olhos, dada como incurável por especialistas na matéria.
Um verdadeiro milagre.
A usina só começou a operar quando tudo estava pronto e acabado,
passando logo a ser considerada uma empresa de ponta e “no melhor dos mundos”,
como diria Pangloss.
Um primor a usina. Era o orgulho de seu Fontino, a vaidade da gente do
lugar e a admiração dos que a conheciam, porquanto arquitetada com argúcia e
executada com conhecimento de causa e rigoroso planejamento, fatores
indispensáveis ao êxito de qualquer negócio.
A usina, com uma equipe de trabalho bem preparada, contava com um corpo
operacional de sessenta pessoas, entre operários e administradores. Uma empresa
moderna, bem instalada e de uma organização exemplar. Entre as peças que
compunham o organismo, destaco: um arruado com cerca de cinquenta casas, em
fila única, construídas dentro dos padrões habitacionais modernos, com energia
elétrica e água encanada; uma capela para o povo em geral; um posto de saúde
apto ao atendimento dos primeiros socorros; uma escola para todos; um galpão
para o funcionamento das vinte máquinas desfibradoras; uma caixa d’água e um
poço artesiano; um forno e um bueiro para queima dos resíduos das folhas
desfibradas do caroá, que não foram aproveitadas na ração para animai s; a casa
da prensa, de onde as fibras do caroá em fardos prensados eram transportadas
para comercialização; um barracão para venda dos mantimentos à população; a
casa de máquinas, com gerador de energia elétrica para as desfibradoras,
arruado e casas dos operários; um campo apropriado para estender as fibras para
secagem; e, por fim, a casa grande, um prédio elegante e suntuoso, alpendrado e
com vários quartos com banheiro para a família dos proprietários e convidados.
Do outro lado da rodovia, um posto de gasolina e um hotel edificados e mantidos
pela empresa. Santa Luzia era o oásis da região.
A casa grande era o ponto central daquela bela aldeia. A alegria e a
felicidade de Fontino, familiares e amigos. Sempre cheia de gente nas
principais festas do ano, notadamente Natal e São João. Fontino não se cansava
de dizer que os melhores dias de sua vida eram os que passava em Santa Luzia,
na doce companhia dos seus, das pessoas queridas e dos operários, a quem os
chamava de companheiros de jornada. Teve que abandonar os estudos para cuidar
dos negócios do pai que falecera prematuramente, deixando uma numerosa prole.
Lamentava não ter se formado em veterinária ou agronomia, ou nas duas. Mas era
um homem de leitura. Sentia-se querido, admirado e amado por todos. Era tido
como o Delmiro Gouveia do Moxotó. Preferia o campo à cidade, por isso passava
mai s tempo em Santa Luzia, gozando do doce encanto da vida campestre, em
contacto direto com a natureza. Na safra do imbu, não dispensava uma imbuzada
na ceia, salientando que achava a comida mais deliciosa do mundo. Apreciava as
iguarias de milho, em especial pamonha e xerém com leite, sem esquecer a
macaxeira com carne de sol e manteiga de garrafa. Como sobremesa, não podia
faltar a rapadura com queijo de coalho, exaltando seu sabor e sustança. Achava
o sertão maravilhoso.
A escrita da usina e seu gerenciamento eram da responsabilidade do
competente contador Antônio Salustiano, Salu, amigo íntimo e parente de seu
Fontino. Solteirão, vaidoso e mulherengo, possuía uma barata e os fins de
semana sempre passava em Esperança, onde matinha uma casa destinada a encontros
amorosos. Matinha as contas em dia, com a contabilidade da firma em completa
ordem. Era quem respondia pelo expediente da usina na ausência do dono e a
representava em todas as atividades públicas e particulares. Calmo e sensato,
com bom traquejo social, desincumbia-se bem de todas as tarefas que lhe eram
confiadas. Tinha a usina como parte integrante de sua vida, contribuindo muito
para o seu bem-estar e desenvolvimento. Era o homem da confiança de seu
Fontino.
O barracão era administrado por Henrique Celestino, também da confiança
de seu Fontino. Henrique era uma pessoa modesta, mas inteligente e engenhosa,
desempenhando o cargo com dedicação e firmeza. Casado, do consórcio houve dois
filhos, Josué e Helena, tão irmãos quanto amigos. Lena, como a chamavam, era
uma moça alourada, de olhos verdes, meiga e gentil, de uma beleza encantadora e
muito querida na comunidade. Dividia o tempo entre a escola, como professora, e
a capela, como catequista e zeladora. Era quem promovia as festas religiosas
tão do agrado de todos. A população tinha por ela o maior respeito e admiração,
e o pai lhe dedicava grande amor e afeição. Era a alma da comunidade. Henrique,
natural de São José do Egito, poeta, primo e conterr âneo dos irmãos Dimas e
Lourival Batista, afamados violeiros repentistas do Pajeú, ao lado dos não
menos famosos Antônio Marinho e Rogaciano Leite, contava com a simpatia do
pessoal. Seu Fontino, que apreciava os violeiros repentistas e não perdia uma
cantoria, encantava-se com as modalidades de repentes, em especial com “GALOPE
À BEIRA MAR”, gostava de conversar com Henrique e de ouvir suas poesias.
Oferecia-lhe motes que ele glosava de improviso. Certa vez deu-lhe o consagrado
mote: “COMO É GRANDE O PODER DA NATUREZA”, que ele assim glosou:
Uma semente que se lança ao chão
Por sua própria força nasce e cresce
Se multiplica em galhos e floresce
E frutifica após a floração
Sua ramagem em ondulação
Dança e farfalha com graça e leveza
Resiste o tempo, vence a correnteza
E suporta o furor da tempestade
Mostrando pelo dom da Divindade
Como é grande o poder da
natureza.
A capela de Santa Luzia, um lugar sagrado para seu Fontino que, embora
não sendo um católico praticante, era um homem de fé e crente em Deus. Tinha-a
como a coisa mais preciosa da usina, sempre realizando nela atos religiosos,
inclusive celebração de Missa, para ele o ato mais sublime da liturgia católica. Ao lado da
capela havia um espaçoso salão onde se realizavam encontros comunitários e
festas. Era o ponto mais alegre e divertido da usina.
O posto de gasolina, cujo prédio despertava a atenção de todos pela
beleza e elegância de suas linhas arquitetônicas, sobretudo suas colunas e
formato, lembrando uma grande cadeira, era o ponto certo de parada obrigatória
dos muitos caminhoneiros das estradas poeirentas desse sertão bravio e
encantador. E, por fim, o hotel, que era um complemento do posto. Um ajudava o
outro. Estava sempre cheio, não só pelo ambiente aconchegante, mas pelo
excepcional tratamento que dava aos fregueses, além de servir a comida mais
apetitosa do mundo, especialmente buchada de bode, carne de sol e galinha à cabidela.
A USINA DE CAROÁ SANTA LUZIA por muitos anos esteve na crista das
notícias econômicas da região, como um empreendimento lucrativo e alcance
social. Além do tratamento dispensado aos operários e da forma de vida que lhes
era proporcionado, todos eles, nos fins de ano, tinham uma participação nos
lucros. Era a antecipação do 13º salário atualmente vigente.
Porém, como não há bem que sempre dure nem mal que não acabe, o tempo de
Santa Luzia chegou ao fim. Pois que, Eduardo, o filho caçula de seu Fontino,
estudante de direito, rapaz simpático e elegante, dado a conquistas amorosas,
enfeitiçou-se pela beleza de Lena e tanto fez, com promessas e juras de amor,
que conseguiu iludi-la e ganhar sua confiança, terminando por desvirginá-la
e engravidá-la. Henrique, pai de Lena, pelo respeito e gratidão que tinha a seu
Fontino não teve coragem de tratar do assunto com ele nem com o filho,
inclusive proibindo Josué de fazê-lo, dando o caso por encerrado. Josué, no
entanto, não suportando a dor e sofrimento da irmã, mesmo contrariando a
vontade do pai, resolveu entender-se com Eduardo, que o recebeu mal e zombou de
sua proposta de casamento. Não há no mundo coisa que revolte mais do que a
injustiça e a humilhação. Como na época casos como este só se resolviam com
casamento ou derramamento de sangue, para lavar a honra ultrajada e
vilipendiada, Josué, indignado, por conta própria, sem ouvir ninguém,
assassinou Eduardo a golpes de faca peixeira. Foi um dia de juízo. Estava
decretado o fim de Santa Luzia.
Seu Fontino muito desgostoso com a morte do filho, sem comentar o
ocorrido, abandonou Santa Luzia e dela não quis mais saber de nada. Interveio
apenas para ordenar aos filhos que nada fizessem contra o rapaz homicida e seus
familiares. Sua atitude diante do acontecido define bem o homem que era.
Comentava-se que se ele tivesse tido conhecimento do fato, pelo que era e pelo
poder que exercia, a história teria sido outra bem diferente. Infelizmente foi
assim.
Hoje, de Santa Luzia, só restam apenas lembranças de um passado e
escombros de um lugarejo que teve os seus dias de glória.
Quem passa por lá vê um bueiro sem fumaça, um posto de gasolina sem vida
e um hotel sem alma. Tudo é silêncio!...Autor: JCarneiro - Recife/PE
3 comentários:
Prosa entremeada de poesia é o que encontramos nessa história de amores e tragédias, Ficção que pode acontecer na vida real. Muito bom!!!
O que o destino traça, o homem não desamarra e aí se cumpriu a sina de Santa Luzia e os atores de conto tão bem costurado. Parabéns! Marina Alves.
O mote da 'grande natureza' me fez lembrar de composição de João do Vale chamada Morceguinho, cantada com Zé Ramalho. Grande João, lá no Maranhão! :-)
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