sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O lobisomem do sertão

Autora: Michele Calliari Marchese

Todo mundo ficou apavorado quando viu a Dona Elvira grávida. É que ela já tinha seis filhas mulheres e a vinda de um sétimo filho que fosse homem aterrorizava sobremaneira. É que nesses casos é certo e notório tratar-se de um lobisomem.
Os meses passaram numa lentidão nunca sentida antes em todos os cantos da cidade, a apreensão quanto ao nascimento daquele filho era comentado inclusive na missa das oito. A única pessoa que não atinava com o que estava acontecendo era a própria Elvira que dizia que filho é filho e não se pode desmerecer e tampouco refugar. Amava-o desde o dia que soube estar grávida e fosse ele lobisomem ou não, era o seu filho. E talvez que viesse outra menina e a turba calaria, decerto.
Mas acontece que as premonições quanto ao sexo do bebê se confirmaram no dia que a parteira saiu fugida da casa da Elvira depois do parto. “Cruz credo”, ela dizia, se benzendo e falando para quem quisesse ouvir que era macho aquele nascido e fez coro às lamentações das beatas mais fervorosas.
O padre não acreditava nessas lendas e acalmou os pais, fez o batismo como sempre fez com todos os filhos daquela vila esquecida por Deus e abençoou aquela alma já rechaçada. E não perdoou ninguém em seu sermão na missa do dia seguinte.
Oras, a maioria se arrependeu de ter desdito o pobrezinho que só sabia mamar e dormir no seu sono de bebê. E muitas mulheres foram visitar a Elvira levando mimos e roupinhas bordadas ao pequeno que se chamava Lucas, em homenagem ao apóstolo preferido do pai.
A infância da criança transcorreu normalmente e ninguém mais lembrava que ele era o sétimo filho daquele casal, mesmo porque a Elvira teve mais dois filhos depois dele e todos varões.
Exatamente no dia em que o Lucas completara treze anos, aconteceu uma morte pavorosa: o Genivaldo estava morto em frente à capela e tinha morrido decerto daquela mordida no calcanhar que todo mundo viu. Espumava aquela ferida medonha e enterraram o dito justamente no momento que o Lucas assoprava a única vela do bolo.
Ninguém se apercebeu que aparecia uma morte por mês e sempre na primeira sexta-feira de lua cheia e o morto morria com uma mordida nas pernas ou nos pés. A coisa começou a ficar assustadora pois que poderia ser obra de algum chupa cabra ou de lobisomem.
Logo se acercaram de cuidados e o dono do único posto de gasolina que tinha ali para abastecer nenhum carro - pois que não tinha nenhum naquela erdade – achou também que poderia ser trabalho de jagunço doente.
Era muito comum o aparecimento de jagunços pela Campina dos Bodes Ausentes, de modo que não seria de todo impossível que algum estivesse fora das ideias e resolvesse matar a Deus dará, por maldade mesmo. O povo resolveu de comum acordo armarem arapucas pela estrada, soltarem os cachorros durante a noite e se revezarem nos cuidados com a segurança de todos.
Foi a Elvira que notou o sangue no meio da roupa daquele sétimo filho, aquele que todos falaram ser um lobisomem antes mesmo de nascer. Os outros esqueceram, ela não. Nunca esquecia uma ofensa feita a um filho e se de fato era ele que matava os outros ela saberia só de olhar nos olhos dele.
Inquiriu o Lucas a respeito daquele sangue em suas roupas e embaixo dos tamancos de lida e ele não soube o que responder. Ficaram se olhando muito tempo até que a mãe estalou os lábios e disse-lhe que fosse embora para outros sertões e que não dizimasse as crianças pelo amor de Deus.
E então, numa noite quente de lua cheia a casa acordou alarmada com uivos vindos de fora. Eram tão assustadores que o marido da Elvira mal conseguiu vestir uma calça e também não conseguia carregar a arma de tanto terror em escutar aqueles gritos pavorosos. As galinhas cacarejavam num lamento de morte e em seguida um silêncio assustador. Ninguém queria sair de casa e a Elvira tratou de contar os filhos presentes. Faltava um. O Lucas.
Pois que o Lucas começou a gritar do lado de fora e a bater na porta dizendo querer entrar e todos se olharam assustados e se lembraram da aura triste de lobisomem que aconchegava aquela família como numa tristeza de velório.
A Elvira deixou o rapaz entrar. Notou em sua aparência decrépita o sofrimento daquele estado inusitado, pois que estava nu e tinha muitos ferimentos. Trancou-se no quarto com aquele filho tão amado e só saíram no dia seguinte, visivelmente transtornados e também porque acontecia o velório do Tibúrcio, o morto na noite anterior.
Nunca se soube se de fato o Lucas era o autor daquelas mortes feitas de mordida de cão raivoso, só se soube que ele partiu na seca mais ferrenha que se teve notícia, para nunca mais voltar. A Elvira guardou segredo daquela conversa até a morte e partiu com a família para uma cidade vizinha para esquecer.
As poucas pessoas que ainda restavam naquela pequena vila partiram para sempre, com o pensamento de nunca terem existido lá e tampouco levaram os pertences que foram se deteriorando com o tempo e nada mais foi visto. O que se vê da estrada geral são apenas ruínas das almas atormentadas pelo uivo incessante do cão. 

Michele Calliari Marchese é catarinense de Xanxerê. Formada em ciências contábeis, é contista semanal do Jornal Diário Folha Regional de Xanxerê - SC, mantém uma escrivaninha no site Recanto das Letras e no blog Sem Vergonha de Contar. Participou com contos nos livros UFOs - Contos não identificados e Espectra, ambos pela Editora Literata de SP,  do Livro dos Prazeres editado pelo SESC de Santa Catarina e no E-book Quinze Contos Mais pela editora Helena Frenzel.

2 comentários:

Anônimo disse...

Assustam... e muito, as histórias de lobisomem. A maldição faz estrago nas famílias, nas cercanias por onde impera o bicho e na imaginação da gente que voa longe... Até lá pelo sertão por onde andou esse Lucas-lobisomem rsrs... Muito legal. Marina Alves.

Helena Frenzel disse...

Nossa!! Muito criativo! Escrito de um jeito que a gente lê e nem sente que está sendo levado ao final e quando acaba fica a baba... história muito legal, parabéns! Pra falar a verdade eu não queria estar era na pele de quem vai ter de votar só em alguns dos belos textos que li até aqui.