Autora: Marina Alves
Às margens da rodovia, ela parou o carro. Saltou para o acostamento e direcionou o binóculo para um ponto em declive. Queria ver com detalhes o que de longe lhe despertara tanta curiosidade. Ajeitou o foco da lente e exclamou: “Um vilarejo em ruínas, em meio à caatinga. Quem diria!”. Logo adiante, na entrada da estradinha de terra batida, a placa: Vila do Agreste! A moça sorriu satisfeita. Aquele era o tipo de experiência que a atraía...
Maria Inês, vinha de Minas, em viagem de férias,
cumprindo um antigo desejo: conhecer o agreste do sertão pernambucano. Trazia
no imaginário, desde a adolescência, quando fizera a primeira leitura de “Vidas Secas” o cenário das regiões da caatinga.
A saga dos retirantes! Em sua narrativa apaixonante, Graciliano a instigara a
querer sentir na pele os sinais de Fabiano, Sinhá Vitória e a cachorrinha
Baleia. Ainda haveria de ver de pertinho um pé de Mulungu coberto de aves de
arribação, anunciando a estiagem que chegava, minando nascentes, rachando o
leito de rios, manchando com o branco
das ossadas a monotonia da vegetação esturricada de sol.
Maria Inês tomou os
rumos da estradinha esburacada, marcada de pequenas valas provocadas por antigas erosões. Enquanto
tentava evitar os solavancos, a moça divagava: “Que lugar mais esquisito, meu
Deus! Parece que há anos não pisa vivalma por aqui!”. No ar parado da tarde, o
calor era abrasador e apenas o canto lamentoso de alguma ave perdida na galharia ressequida quebrava o
silêncio sepulcral. Refletido no
retrovisor, o céu era de um azul que chegava a doer. A nuvem de poeira fina e
esbranquiçada tremeluzia ao sol do
meio-dia, e chegava a sufocar...
De súbito, a paisagem
mudou. A estrada se afunilou num túnel
de passagem limpa, lisa e sombreada. Maria Inês sentiu-se envolver por uma estranha
sensação: o que a esperava pela frente? Abruptamente, numa curva do caminho,
deu de cara com o lugarejo! Ou melhor, com
as ruínas do que fora tudo ali, em outros tempos. Diante de visão
tão inusitada, estupefata, a moça freou o carro. Vila do
Agreste! Um vilarejo-fantasma! Estava adorando tudo aquilo...
A moça estacionou sob uma
árvore e seguiu a pé pelo que fora uma
rua do povoado. Enquanto caminhava, ia absorvendo a desolação do lugar. Somente
ruínas! Por todo lado, sinais do antigo progresso que um dia andara por ali.
Mas agora, o que se viam eram construções desmoronadas, tomadas pela hera, adentradas
pelo mato, espectros de um tempo perdido. Desleixo por todo canto, solidão de
doer... E os moradores? O que teria acontecido para que tivessem debandado? Que
ventos assombrosos teriam soprado por aquelas bandas, deixando só os rastros da
destruição e do abandono?
A certa distância do que
parecia ser os destroços de uma igreja, Maria Inês avistou um casebre de
paredes tortas e desgastadas. Uma porta estreita e duas pequenas janelas de
madeira se abriam para a rua. Foi dali que veio o chamado: “Ei, dona!”. A moça
estreitou os olhos e divisou, na semiescuridão
do interior da casa, esdrúxula figura. Empoleirada num banco tosco, armado sobre
dois paus, com seu riso sem dentes, a velha anunciou: “Sá Rosa, pra lhe
servir”. Que idade teria? A moça não soube calcular. Apenas deteve-se nos
profundos sulcos da pele crestada de sol, nos cabelos ralos, de um branco
amarelado, escorrendo em desalinho sobre o vestido escuro e rústico que lhe caía
até os pés. Aninhado em seu colo, o bicho: um gato preto que ronronava, esticando patas de unhas
afiadas, tremelicando os bigodes, como a espantar
invisíveis moscas.
Maria Inês aproximou-se.
A mulher estendeu-lhe uma cabaça e uma caneca de folha de flandres já gasta
pelo uso. Com um gesto de mão, a moça rejeitou a água: algo naquela velha lhe
causava arrepios. Teve vontade de seguir adiante, mas a curiosidade a prendeu.
Queria saber um pouco mais sobre aquele inóspito lugar. De fato, não demorou
muito, e Sá Rosa, já lhe contava com voz e roufenha e estranhamente arrastada:
“Sou a derradêra vivente
desse lugá, num sabe? Mái tenho minhas razão pra fincá pé nesses chão. Vila do
Agreste já prosperô, Sá moça. Teve seus tempo bão. O coroné Herculano Silveira,
sinhô de muitas riqueza, tocava aqui nas terra, as lavôra e a fábrica de caruá.
O povoado tinha de tudo: o grupo escolar; a capela pras reza de domingo. Tinha
posto de gasolina, pouso pros pernoite dos viandante. E domingo era a fêra, ficava ali naquele descampado que hoje é só tristeza e puêra. Vinha povo de longe, vendê
e comprá de um tudo! De porco e bezerro
à tuáia de bordado e enxoval de menino novo.”
“Então, Sá moça, a vida
dá seus nó. O povoado se acabô, desde a praga dum vigáro capucho, de passagem
por aqui, nas missão. O batina foi
escorraçado feito cão danado, por
Virgulino, fio de Coroné Herculano. O menino era sem cabeça, zombou das
reza do vigáro. Mandô uns jagunço corrê com ele. Déro uma pisa no coitado lá pras
banda do Corguinho e despacháro o pobre, tudo ensanguentado, num jumento véio.
Dias passado, acháro os ossos do santinho, arrodeados de arubu.”
— Sá Rosa! Que caso!
“Então, daí que as coisa
desandáro, num sabe? A usina deu pra tráis, os
negóço corrêro água abaixo. Virgulino caiu morto a tiro de parabelo em noite sem lua, nunca se sôbe quem deu. Na farta do fio e das
riqueza, o Coroné anoiteceu e num amanheceu. Sem serviço, sem o de comê, o povo foi sumindo, uns pra lugá
de mais recurso, ôtros até lá pra Recife afora. E tudo virô essa pasmacêra que Sá moça tá veno. Ali adiênte era a antiga moradia de Coroné Herculano, Rei do Caruá. Tá em pé de temosa, a tapera.
Tem pra mim que é esprito de Lampião, que o Coroné escondeu ali muitas vêis,
que põe a cumunhêra do casarão em pé. Lá
na frente, é os resto do Catimbau, bar dos bão, restorante de premêra. Naqueles
tempo, quem tocava era Sinhá Zefa, muié caridosa que nunca dexô vivente nenhum
passá aperto de fome.”
“Eu num vô daqui pelo
motivo de que sô noiva, num sabe? A
graça de meu noivo é Siverino Nonato. Conde
as coisa pioráro ele foi caçá serviço na
cidade grande. Sivirino sumiu, num deu mais nutiça, perdeu as condição de vortá. Mái eu espero. O
pobre pode dá na veneta de aparicê. Se num me acha aqui, adonde havera de me
caçá? Esse mundão de caatinga é grande por demais, e de certo que ele num acha eu. E a questã do casóro?
Promessa é promessa, Sá moça... Na vontade
de Deus pai, cá me aprumo com Picumã, meu bichano preto, úrtima recordação de
Sivirino. Vamo viveno como qué Deus nosso Sinhô. Lá pras banda da antiga
fábrica de caruá, tem uns pé de jerimum, quarqué coisinha de aipim e fêjão. A
cabra que Sá moça escutô berrá agora,
tamém é de meus pertence. Deus é pai, vai proveno os fio... ”
Maria Inês respirou
fundo. Que figura, Sá Rosa! Que história a de Vila do Agreste! Quem a ouvisse
contar, por certo iria duvidar! Assim pensando, a moça despediu-se da velha. Queria explorar mais
o lugar, aproveitar a luz, fotografar cada detalhe daquele naco de passado. Ia
ter muito que mostrar. Coisa de filme!
De volta ao carro, deu partida e rumou pela estrada sombreada do
arruado. Pisava fundo o acelerador, acompanhando pelo retrovisor as últimas
imagens do vilarejo que mais pareciam emergir de um livro de assombrações.
De volta ao hotel, Maria
Inês tirou da bolsa o mapa de viagem: queria marcar o ponto exato da inusitada
visita daquele dia. E qual não foi a sua surpresa ao descobrir: Vila do Agreste
não estava no mapa! Talvez o lugarejo fosse pequeno demais, sem importância o bastante
para constar do guia rodoviário que
tinha nas mãos. Porém o fato é que embora tenha, exaustivamente, indagado sobre
Vila do Agreste, Sá Rosa e outros habitantes que supostamente nela pudessem ter
vivido, a moça jamais encontrou quem lhe desse qualquer notícia dos fatos. Dos
fatos... Mas e as fotos? De tudo que fora minuciosamente registrado naquela sinistra
tarde, Maria Inês tinha nas mãos apenas um filme vazio...
Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG
Página da autora:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920
Publicação autorizada pela autora
Página da autora:
http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920
Publicação autorizada pela autora
2 comentários:
Esse conto é maravilhoso! Tá aí um fortíssimo candidato a campeão do concurso! Parabéns à autora ou autor talentoso(a) que escreveu tão boa história!
Muito bem construída e escrita esta narrativa, o que me causou uma leitura fluída e muito agradável. Sem falar dessa espera que comove e angustia. Pois é, tem gente que espera e não cansa de esperar. Promessa é dívida, não? Parabéns ao autor ou à autora, gostei muito.
Postar um comentário