sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Vila do Agreste

Autora: Marina Alves

Às margens da rodovia, ela parou o carro. Saltou para o acostamento e direcionou o binóculo para um ponto em declive.  Queria ver  com detalhes o que  de longe lhe despertara tanta curiosidade. Ajeitou o foco da lente e exclamou: “Um vilarejo em ruínas, em meio à caatinga. Quem diria!”. Logo adiante, na entrada da estradinha de terra batida, a placa: Vila do Agreste! A moça sorriu satisfeita. Aquele era o tipo de experiência que a atraía...
 Maria Inês, vinha de Minas, em viagem de férias, cumprindo um antigo desejo: conhecer o agreste do sertão pernambucano. Trazia no imaginário, desde a adolescência, quando fizera a primeira leitura de  “Vidas Secas” o cenário das regiões da caatinga. A saga dos retirantes! Em sua narrativa apaixonante, Graciliano a instigara a querer sentir na pele os sinais de Fabiano, Sinhá Vitória e a cachorrinha Baleia. Ainda haveria de ver de pertinho um pé de Mulungu coberto de aves de arribação, anunciando a estiagem que chegava, minando nascentes, rachando o leito de rios, manchando  com o branco das ossadas a monotonia da vegetação esturricada de sol.
Maria Inês tomou os rumos da estradinha esburacada, marcada de pequenas valas  provocadas por antigas erosões. Enquanto tentava evitar os solavancos, a moça divagava: “Que lugar mais esquisito, meu Deus! Parece que há anos não pisa vivalma por aqui!”. No ar parado da tarde, o calor era abrasador e apenas o canto lamentoso de alguma ave  perdida na galharia ressequida quebrava o silêncio sepulcral.  Refletido no retrovisor, o céu era de um azul que chegava a doer. A nuvem de poeira fina e esbranquiçada  tremeluzia ao sol do meio-dia,  e chegava a sufocar...
De súbito, a paisagem mudou. A estrada se afunilou  num túnel de passagem limpa, lisa e sombreada. Maria Inês sentiu-se envolver por uma estranha sensação: o que a esperava pela frente? Abruptamente, numa curva do caminho, deu de cara com o lugarejo! Ou melhor, com  as ruínas do que fora tudo ali, em outros tempos. Diante de visão tão  inusitada,  estupefata, a moça freou o carro. Vila do Agreste! Um vilarejo-fantasma! Estava adorando tudo aquilo...
A moça estacionou sob uma árvore e seguiu a pé pelo que  fora uma rua do povoado. Enquanto caminhava, ia absorvendo a desolação do lugar. Somente ruínas! Por todo lado, sinais do antigo progresso que um dia andara por ali. Mas agora, o que se viam eram construções desmoronadas, tomadas pela hera, adentradas pelo mato, espectros de um tempo perdido. Desleixo por todo canto, solidão de doer... E os moradores? O que teria acontecido para que tivessem debandado? Que ventos assombrosos teriam soprado por aquelas bandas, deixando só os rastros da destruição e  do abandono?
A certa distância do que parecia ser os destroços de uma igreja, Maria Inês avistou um casebre de paredes tortas e desgastadas. Uma porta estreita e duas pequenas janelas de madeira se abriam para a rua. Foi dali que veio o chamado: “Ei, dona!”. A moça estreitou os olhos  e divisou, na semiescuridão do interior da casa, esdrúxula figura. Empoleirada num banco tosco, armado sobre dois paus, com seu riso sem dentes, a velha anunciou: “Sá Rosa, pra lhe servir”. Que idade teria? A moça não soube calcular. Apenas deteve-se nos profundos sulcos da pele crestada de sol, nos cabelos ralos, de um branco amarelado, escorrendo em desalinho sobre o vestido escuro e rústico que lhe caía até os pés. Aninhado em seu colo, o bicho: um gato preto  que ronronava, esticando patas de unhas afiadas,   tremelicando os bigodes, como a espantar invisíveis moscas.
Maria Inês aproximou-se. A mulher estendeu-lhe uma cabaça e uma caneca de folha de flandres já gasta pelo uso. Com um gesto de mão, a moça rejeitou a água: algo naquela velha lhe causava arrepios. Teve vontade de seguir adiante, mas a curiosidade a prendeu. Queria saber um pouco mais sobre aquele inóspito lugar. De fato, não demorou muito, e Sá Rosa, já lhe contava com voz e roufenha e estranhamente arrastada:
“Sou a derradêra vivente desse lugá, num sabe? Mái tenho minhas razão pra fincá pé nesses chão. Vila do Agreste já prosperô, Sá moça. Teve seus tempo bão. O coroné Herculano Silveira, sinhô de muitas riqueza, tocava aqui nas terra, as lavôra e a fábrica de caruá. O povoado tinha de tudo: o grupo escolar; a capela pras reza de domingo. Tinha posto de gasolina, pouso pros pernoite dos viandante. E domingo era a fêra,  ficava ali naquele descampado que hoje é  só tristeza e puêra. Vinha povo de longe, vendê e comprá de um tudo! De porco e  bezerro à tuáia de bordado e enxoval de menino novo.”
“Então, Sá moça, a vida dá seus nó. O povoado se acabô, desde a praga dum vigáro capucho, de passagem por aqui, nas missão. O batina  foi escorraçado feito cão danado, por  Virgulino, fio de Coroné Herculano. O menino era sem cabeça, zombou das reza do vigáro. Mandô uns jagunço corrê com ele. Déro uma pisa no coitado lá pras banda do Corguinho e despacháro o pobre, tudo ensanguentado, num jumento véio. Dias passado, acháro os ossos do santinho, arrodeados de arubu.”
— Sá Rosa! Que caso!
“Então, daí que as coisa desandáro, num sabe? A usina deu pra tráis, os  negóço corrêro água abaixo. Virgulino caiu morto a tiro  de parabelo em noite sem lua,  nunca se sôbe quem deu. Na farta do fio e das riqueza, o Coroné anoiteceu e num amanheceu. Sem serviço, sem  o de comê, o povo foi sumindo, uns pra lugá de mais recurso, ôtros até lá pra Recife afora. E tudo virô essa  pasmacêra que Sá moça tá veno. Ali adiênte era  a antiga moradia de Coroné Herculano,  Rei do Caruá. Tá em pé de temosa, a tapera. Tem pra mim que é esprito de Lampião, que o Coroné escondeu ali muitas vêis, que põe  a cumunhêra do casarão em pé. Lá na frente, é os resto do Catimbau, bar dos bão, restorante de premêra. Naqueles tempo, quem tocava era Sinhá Zefa, muié caridosa que nunca dexô vivente nenhum passá aperto de fome.”
“Eu num vô daqui pelo motivo de que sô noiva, num sabe?  A graça de meu noivo é  Siverino Nonato. Conde as coisa pioráro ele foi  caçá serviço na cidade grande. Sivirino sumiu, num deu mais nutiça,  perdeu as condição de vortá. Mái eu espero. O pobre pode dá na veneta de aparicê. Se num me acha aqui, adonde havera de me caçá? Esse mundão de caatinga é grande por demais, e de certo  que ele num acha eu. E a questã do casóro? Promessa é promessa, Sá moça...  Na vontade de Deus pai, cá me aprumo com Picumã, meu bichano preto, úrtima recordação de Sivirino. Vamo viveno como qué Deus nosso Sinhô. Lá pras banda da antiga fábrica de caruá, tem uns pé de jerimum, quarqué coisinha de aipim e fêjão. A cabra que  Sá moça escutô berrá agora, tamém é de meus pertence. Deus é pai, vai proveno os fio... ”
Maria Inês respirou fundo. Que figura, Sá Rosa! Que história a de Vila do Agreste! Quem a ouvisse contar, por certo iria duvidar! Assim pensando,  a moça despediu-se da velha. Queria explorar mais o lugar, aproveitar a luz, fotografar cada detalhe daquele naco de passado. Ia ter muito que mostrar. Coisa de filme!  De volta ao carro, deu partida e rumou pela estrada sombreada do arruado. Pisava fundo o acelerador, acompanhando pelo retrovisor as últimas imagens do vilarejo que mais pareciam emergir de um livro de assombrações.
De volta ao hotel, Maria Inês tirou da bolsa o mapa de viagem: queria marcar o ponto exato da inusitada visita daquele dia. E qual não foi a sua surpresa ao descobrir: Vila do Agreste não estava no mapa! Talvez o lugarejo fosse pequeno demais, sem importância o bastante para constar  do guia rodoviário que tinha nas mãos. Porém o fato é que embora tenha, exaustivamente, indagado sobre Vila do Agreste, Sá Rosa e outros habitantes que supostamente nela pudessem ter vivido, a moça jamais encontrou quem lhe desse qualquer notícia dos fatos. Dos fatos... Mas e as fotos? De tudo que fora minuciosamente registrado naquela sinistra tarde, Maria Inês tinha nas mãos apenas um filme vazio...


Autora: Marina Alves - Lagoa da Prata/MG

Página da autora:

http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=64920

Publicação autorizada pela autora

2 comentários:

Maria Mineira disse...

Esse conto é maravilhoso! Tá aí um fortíssimo candidato a campeão do concurso! Parabéns à autora ou autor talentoso(a) que escreveu tão boa história!

Helena Frenzel disse...

Muito bem construída e escrita esta narrativa, o que me causou uma leitura fluída e muito agradável. Sem falar dessa espera que comove e angustia. Pois é, tem gente que espera e não cansa de esperar. Promessa é dívida, não? Parabéns ao autor ou à autora, gostei muito.