Autora: Anajara
Missley da Conceição nasceu no dia 29 de novembro, no início das festividades de Nossa Senhora da Conceição, por isso recebeu esse nome pelo seu pai Sr. João Romão. A mãe Dona Mariinha morreu no parto. Infelizmente.
O Sr. João Romão não se casou novamente, por ter que criar a
menina sozinho. Trabalhava de sol a sol arrancando macaxeiras para serem
vendidas nos restaurantes da capital.
Nos primeiros anos Missley acompanhava o pai no trabalho.
Depois foi ficando grandinha e já com cinco anos ficava em casa sozinha. Mas,
os vizinhos sempre cuidavam da criança, dando comida e alguns brinquedos para
ela se distrair.
Quando seu pai chegava da roça, mãos calejadas, pele enrugada
e castigada pelo sol, dava um abraço na filha e prometia levá-la à feira no
centro da cidade de Brejo Santo, onde moravam. A cidade era muito pequena, com
algumas roças que rodeavam o vilarejo. Um cenário cinza-azul, sol ardente,
pouca chuva e um pôr do sol deslumbrante. A terra seca como os calcanhares do
Sr. João Romão.
A idade de Missley ir para a escola chegara mais depressa
que se esperava. A casa onde se localizava a única escola de Brejo Santo estava
em ruínas e a professora não dava mais aulas lá, foi-se para a capital com um
forasteiro que apareceu certo dia e levou a única chance da menina de aprender
a ler.
Havia no seu semblante um ar de decepção como o do pai
quando chegava da roça e se acocorava no canto do fogão pensativo, sem
palavras, sem ação diante da vida que tinha e olhava a filha e olhava a casa...
a casa... a filha... a casa... infinitamente.
Pensava quando conheceu Mariinha na Semana Santa, logo na
sexta-feira da paixão que a vida seria próspera e fecunda. Como não sabia usar
as palavras pegou na sua mão e com os olhos e somente em pensamento deu-lhe um
beijo na testa, respeitosamente, e um silêncio se fez pairar, como a poeira dos
pés das crianças que brincavam em redor da barraca de doces da mãe de Sr. João
Romão. Ele ajudava a vender os doces. Mas, de cabeça abaixada, levantando-a um
pouquinho só para entregar o doce.
Mariinha tinha uma pele cor de jambo e um olhar pedinte,
como que quisesse dizer algo que não sabia. Aliás, toda a gente tinha uma falta
de essência que integra o corpo e integra a alma que fazia com que muitos
tivessem esse jeito meio mole de falar e olhar, como se estivessem
desesperançosos de tudo. Mas, não era bem assim. No fundo havia uma força
interior que formava a peculiaridade do povo nordestino única e viva. Que os
diferençava das outras pessoas mesmo que estivessem longe.
As festas, a cultura, a religiosidade estavam impregnadas na
pele daquele povo que de sofrido e abandonado se faziam sorrir muito alto e
feliz como as saias que rodopiavam nas quadrilhas de São João.
Missley se deslumbrava com as cores dos doces, dos pratos,
das roupas de festas, florais com cores vibrantes e sonhava mesmo acordada.
A menina crescia e com ela o desejo de casar e se mudar para
o Rio de Janeiro. Sair daquele lugar fantasma, era o seu maior sonho.
Sentado, agachado junto ao borralho, sem cinzas, sem fogo e
frio estava o Sr. João Romão com seus pensamentos, enquanto, batia à porta. O
barulho do trote do cavalo doía nos seus ouvidos e cada vez mais ele apertava
os joelhos contra a cabeça.
Naquele momento haveria uma venda. Não uma dessas comuns que
aconteciam em Brejo Santo. Mas, as do futuro com pacote completo. O Sr. João
Romão estava prestes a vender sua última filha.
Nos noticiários das cidades grandes como o Rio de Janeiro
onde Missley iria morar publicavam constantemente que pessoas de classe média
estavam vendendo rins, fígado, sêmen, óvulos e outros órgãos para transplantes
a preços exorbitantes. Mas, nem Missley nem seu pai ao menos imaginariam que
isso fosse possível acontecer. Para eles a cidade do Rio de Janeiro era o de
melhor que poderia acontecer com uma pessoa, por isso não hesitou nem por um
segundo em mandar sua filha para lá. Qualquer coisa seria melhor que passar
necessidade, sofrer com a miséria e o abandono, morrer à míngua...
Assim, então, começa a história de uma garotinha de 15 anos,
olhos claros, pele suave como a seiva de uma flor. Ingênua e doce como o clarão
da lua.
No Rio de Janeiro foi à manicure, cortou os cabelos e
matricularam a menina numa escola pública perto da casa onde morava, de agora
em diante, no período da manhã, e à tarde e à noite vestia um uniforme azul
claro e, no colo, acalentava uma criança tão linda e alva como o olhar da lua.
Missley conheceu o Teatro Municipal, o Cristo Redentor e
quando aprendeu a ler ia à Biblioteca Pública sempre que podia e lá ficava
lendo e sonhando como jamais imaginou que pudesse acontecer em sua vida.
O seu pai faleceu. O casebre caiu.
Trinta anos se passaram que o Rei do Caruá, Antônio Carlos,
levou-a para o Rio de Janeiro. Em sua lembrança ficaram apenas umas fotografias
que Carlinhos tirou de Brejo Santo e a
menininha guardou numa caixa de Pandora. De quando em vez abria a caixa e de lá
saía cores, formas, cheiros de um lugar fantasma, que não existe mais, a não
ser ruínas, destruição e abandono.
Elas cresceram, Missley e Maria Clara.
Hoje elas estão passeando no Jardim Botânico. O deslumbramento daquele lugar, a
natureza, as árvores, as flores, os bichos, paradoxalmente, se misturavam com as fotografias que Missley
mostrava a Maria Clara, de um sertão de um Pernambuco que era só seu. E que ela
nunca conseguiu se desvencilhar, porque era a sua história. E nada mais.
Publicação autorizada pela autora
Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG
Publicação autorizada pela autora
3 comentários:
Dificilmente a gente consegue se desvencilhar do passado, da infância, principalmente. Não importa que tenha sido boa ou má. Texto muito bom! Parabéns!
Cumprindo o destino, tantas Missleys se vão para não voltar. Restam apenas, mas sempre, fotografias e um tantinho escondido na memória que não deixam as raízes morrerem. Cumprimentos ao autor, ou autora do conto. Marina Alves.
Nossa, que história comovente. Muitos diriam que ela teve até sorte... sorte madrasta que em nome da sobrevivência separa filhos e pais. Até quando, não?
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