sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Missley da Conceição

Autora: Anajara

Missley da Conceição nasceu no dia 29 de novembro, no início das festividades de Nossa Senhora da Conceição, por isso recebeu esse nome pelo seu pai Sr. João Romão. A mãe Dona Mariinha morreu no parto. Infelizmente.
O Sr. João Romão não se casou novamente, por ter que criar a menina sozinho. Trabalhava de sol a sol arrancando macaxeiras para serem vendidas nos restaurantes da capital.
Nos primeiros anos Missley acompanhava o pai no trabalho. Depois foi ficando grandinha e já com cinco anos ficava em casa sozinha. Mas, os vizinhos sempre cuidavam da criança, dando comida e alguns brinquedos para ela se distrair.
Quando seu pai chegava da roça, mãos calejadas, pele enrugada e castigada pelo sol, dava um abraço na filha e prometia levá-la à feira no centro da cidade de Brejo Santo, onde moravam. A cidade era muito pequena, com algumas roças que rodeavam o vilarejo. Um cenário cinza-azul, sol ardente, pouca chuva e um pôr do sol deslumbrante. A terra seca como os calcanhares do Sr. João Romão.
A idade de Missley ir para a escola chegara mais depressa que se esperava. A casa onde se localizava a única escola de Brejo Santo estava em ruínas e a professora não dava mais aulas lá, foi-se para a capital com um forasteiro que apareceu certo dia e levou a única chance da menina de aprender a ler.
Havia no seu semblante um ar de decepção como o do pai quando chegava da roça e se acocorava no canto do fogão pensativo, sem palavras, sem ação diante da vida que tinha e olhava a filha e olhava a casa... a casa... a filha... a casa... infinitamente.
Pensava quando conheceu Mariinha na Semana Santa, logo na sexta-feira da paixão que a vida seria próspera e fecunda. Como não sabia usar as palavras pegou na sua mão e com os olhos e somente em pensamento deu-lhe um beijo na testa, respeitosamente, e um silêncio se fez pairar, como a poeira dos pés das crianças que brincavam em redor da barraca de doces da mãe de Sr. João Romão. Ele ajudava a vender os doces. Mas, de cabeça abaixada, levantando-a um pouquinho só para entregar o doce.
Mariinha tinha uma pele cor de jambo e um olhar pedinte, como que quisesse dizer algo que não sabia. Aliás, toda a gente tinha uma falta de essência que integra o corpo e integra a alma que fazia com que muitos tivessem esse jeito meio mole de falar e olhar, como se estivessem desesperançosos de tudo. Mas, não era bem assim. No fundo havia uma força interior que formava a peculiaridade do povo nordestino única e viva. Que os diferençava das outras pessoas mesmo que estivessem longe.
As festas, a cultura, a religiosidade estavam impregnadas na pele daquele povo que de sofrido e abandonado se faziam sorrir muito alto e feliz como as saias que rodopiavam nas quadrilhas de São João.
Missley se deslumbrava com as cores dos doces, dos pratos, das roupas de festas, florais com cores vibrantes e sonhava mesmo acordada.
A menina crescia e com ela o desejo de casar e se mudar para o Rio de Janeiro. Sair daquele lugar fantasma, era o seu maior sonho.
Sentado, agachado junto ao borralho, sem cinzas, sem fogo e frio estava o Sr. João Romão com seus pensamentos, enquanto, batia à porta. O barulho do trote do cavalo doía nos seus ouvidos e cada vez mais ele apertava os joelhos contra a cabeça.
Naquele momento haveria uma venda. Não uma dessas comuns que aconteciam em Brejo Santo. Mas, as do futuro com pacote completo. O Sr. João Romão estava prestes a vender sua última filha.
Nos noticiários das cidades grandes como o Rio de Janeiro onde Missley iria morar publicavam constantemente que pessoas de classe média estavam vendendo rins, fígado, sêmen, óvulos e outros órgãos para transplantes a preços exorbitantes. Mas, nem Missley nem seu pai ao menos imaginariam que isso fosse possível acontecer. Para eles a cidade do Rio de Janeiro era o de melhor que poderia acontecer com uma pessoa, por isso não hesitou nem por um segundo em mandar sua filha para lá. Qualquer coisa seria melhor que passar necessidade, sofrer com a miséria e o abandono, morrer à míngua...
Assim, então, começa a história de uma garotinha de 15 anos, olhos claros, pele suave como a seiva de uma flor. Ingênua e doce como o clarão da lua.
No Rio de Janeiro foi à manicure, cortou os cabelos e matricularam a menina numa escola pública perto da casa onde morava, de agora em diante, no período da manhã, e à tarde e à noite vestia um uniforme azul claro e, no colo, acalentava uma criança tão linda e alva como o olhar da lua.
Missley conheceu o Teatro Municipal, o Cristo Redentor e quando aprendeu a ler ia à Biblioteca Pública sempre que podia e lá ficava lendo e sonhando como jamais imaginou que pudesse acontecer em sua vida.
O seu pai faleceu. O casebre caiu.
Trinta anos se passaram que o Rei do Caruá, Antônio Carlos, levou-a para o Rio de Janeiro. Em sua lembrança ficaram apenas umas fotografias que Carlinhos tirou de Brejo Santo e  a menininha guardou numa caixa de Pandora. De quando em vez abria a caixa e de lá saía cores, formas, cheiros de um lugar fantasma, que não existe mais, a não ser ruínas, destruição e abandono.
Elas cresceram, Missley e Maria Clara. Hoje elas estão passeando no Jardim Botânico. O deslumbramento daquele lugar, a natureza, as árvores, as flores, os bichos, paradoxalmente,  se misturavam com as fotografias que Missley mostrava a Maria Clara, de um sertão de um Pernambuco que era só seu. E que ela nunca conseguiu se desvencilhar, porque era a sua história. E nada mais.


Autora: Anajara Lopes - Itapecerica/MG


Publicação autorizada pela autora


3 comentários:

Maria Mineira disse...

Dificilmente a gente consegue se desvencilhar do passado, da infância, principalmente. Não importa que tenha sido boa ou má. Texto muito bom! Parabéns!

Anônimo disse...

Cumprindo o destino, tantas Missleys se vão para não voltar. Restam apenas, mas sempre, fotografias e um tantinho escondido na memória que não deixam as raízes morrerem. Cumprimentos ao autor, ou autora do conto. Marina Alves.

Helena Frenzel disse...

Nossa, que história comovente. Muitos diriam que ela teve até sorte... sorte madrasta que em nome da sobrevivência separa filhos e pais. Até quando, não?