Autora: Celêdian Assis
Durante algumas semanas e sempre à tarde, depois da confortável sesta em sua rede - um hábito do qual Seu Amantino, já com oitenta e oito anos de idade, não abria mão - buscávamos o velho banco de madeira sob a sombra de uma frondosa árvore, que sobrevivera e mantivera-se imponente, como se ignorasse o calor escaldante do sertão. A ampla área em volta, de chão batido e que parecia bem varrido, limpo - onde se realizam em outros tempos as feiras semanais – contrastava com um céu azul repleto de nuvens de algodão, como que anunciando que a seca perduraria, sabia-se lá até quando.
Dali se via bem em
frente, do outro lado da estrada de rodagem, uma velha construção cuja
arquitetura se assemelhava a uma enorme cadeira, que parecia uma cadeira para
gigante. Fora em outros tempos, nem tão remotos assim, cerca de trinta e poucos
anos, um posto de gasolina, onde além do abastecimento vendiam-se carros e
ficava bem ao lado da única pousada da antiga Vila de Coroatá, vizinha da também
antiga Vila Bela, hoje Serra Talhada, a terra de Lampião. A pousada acabou
tornando-se uma “fresca”, uma espécie de cabaré, enquanto ainda tinha umas
moças “de vida fácil” que se aventuravam e que forasteiros paravam por ali, mas
que partiram todas para outras bandas e depois virou mesmo só um “freje mosca”,
um bar de pouco asseio, de baixa qualidade, do qual só resta uma placa, como me
contara o Seu Amantino. Aquilo tudo que via, me fascinava.
Muitas vezes eu também
saía sozinho e gostava de caminhar no antigo arruamento, uma estradinha de
terra ladeada de arvoredos. Sempre levava um bloco de papel e caneta, anotava
impressões. Se eu fosse poeta, acho que muitas poesias seriam inspiradas
naquela paisagem que se desenhava nas curvas da bela estradinha. Mas na verdade
sou um escritor e escrevo contos, muito poucas vezes me aventurei a fazer
poemas. Fiz muitas fotos, queria guardar bem os detalhes daquele lugar, que me
impressionara tanto. Uma coisa me chamou muito a atenção: apesar do abandono da
vila, de ver tantas ruínas, aquele não parecia um lugar mal assombrado, ou que
por ali circulassem almas penadas. Ao contrário, tudo ali exalava certa aura de
paz, como se no passado as pessoas tivessem sido felizes a seus modos.
Não fui parar ali por
acaso e nem me demorei tanto tempo por maior necessidade, mas tão somente
porque aquele lugar que parecia esquecido em pleno sertão de Pernambuco e que
embora destruído pelo tempo, guardava histórias vivas, das quais, a cada dia eu
podia conhecer um pouco, através da boa prosa de Seu Amantino e também de sua
velha esposa, Dona Creusa, cuja simplicidade e a natural hospitalidade, me
encantaram logo na minha chegada. A seca e o abandono não lhes secaram aquele
sorriso amigo que mantinham em seus rostos surrados pelo tempo.
Semanas antes de minha
parada ali, assim que parei o carro em frente a uma casa bem ao lado de uma
velha igreja abandonada e em meio a outras ruínas, me pareceu ser aquela, a
única casa habitada da vila e então percebi logo um olhar de soslaio, de um “brecheiro”,
atrás de uma janela entreaberta. Desci do carro e gritei: - Oh de
dentro, tem alguém ai? Passaram-se alguns segundos até que aquele senhor
com a face sulcada pelas rugas, os cabelos de um branco encardido, sapecados
pelo sol, com um olhar entre desconfiado e sereno, apareceu na soleira da
porta: - Oh de fora, se achegue! Respondi: - Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Ouvi de lá: - Pra sempre seja
louvado!
Eu tinha poeira por todo
o corpo e a garganta seca, estava carecendo muito de um banho e de uma boa
caneca d’água fresca. A mulher buscou a quartinha de barro e uma velha caneca
esmaltada e me serviu em seguida, o que sorvi quase que num gole só, tamanha
era a sede por conta daquele calor infernal daquele lugar que parecia um
sorvedouro. Antes mesmo de explicar o que eu fazia ali, ele
me disse: - Entra pra dentro, é casa de pobre, num tem luxo não, mas eu
to vendo que o moço ta
carecendo muito dum descanso, num é mesmo? Tome assento e me diga
lá qual é a sua graça.
Agradeci e entrei
naquela sala rústica, que nem mobília tinha direito, exceto uns velhos bancos
de madeira, uma cristaleira e
algumas molduras de retratos que pareciam ser da família, muito amarelecidos
pelo tempo, pendurados nas paredes. Apresentei-me, disse meu nome e enquanto eles
me ouviam, Seu Amantino interrompeu para dizer: - Ô Creusa vá lá na
cozinha, quebra a frieza da água, arruma a bacia pro moço se lavar e
depois ajeita alguma coisinha pra ele forrar o estômago. O senhor deve está com
muita fome e deve está morto de
cansaço por conta dessa estrada
esburacada. É só num arrepará, porque água por essas bandas é
artigo de luxo, o banho tem que sê sapecado mesmo. A luz por aqui também já faz
tempo que num tem mais, é só mesmo na base de lampião. Agradeci
e fui então tomar o tal banho de bacia e em seguida sentei-me ao lado de Dona
Creusa, que já havia preparado o café: - Come um pedaço da broa, daqui
a pouco é hora da janta e vou prepará um dicomê pra nois. Por cá, as comidas são rasteiras mesmo, sem
muita variação.
Respondi que não se
preocupasse comigo, pois eu não era dado a luxos.
Ainda surpreso pela boa
vontade para com um estranho, contei-lhes que estava viajando já havia vários
dias, que parti do Ceará, minha primeira parada desde que saí de Minas, que eu
vinha passando em muitos lugarejos, vilas, cidades, pelo sertão e áreas de
caatinga. Ele arregalou os olhos como quem não tinha entendido o porquê daquilo
despertar meu interesse. Expliquei: - Sou um escritor, Seu Amantino e
tenho andado por essas bandas para recolher material para meu próximo livro,
vim mesmo para conhecer histórias de vida, diretamente desse povo que se
sustenta com a arte, mesmo que a vida seja tão dura para a maioria, é uma
cultura muito rica, muitas tradições e têm muitas histórias para contar. Conheci
as mulheres louceiras de Conceição, lá no Ceará, que fazem lindos trabalhos com
o barro. Depois fui conhecer aqueles que trabalham com o catolé, planta
que eu desconhecia e eu soube que a sua palha é aproveitada no artesanato de
muitos objetos que a gente vê por ai. E venho conhecendo muita arte desse povo,
ouvindo relatos, casos, para criar então a história do meu livro.
- Acho que
o moço vai gostá de saber da história de quando a riqueza daqui
vinha do caruá e quem
mandava era um senhor de terras muito ricaço, que o povo chamava de
Coronel do Caruá. Falou
Seu Amantino, que percebendo a minha curiosidade, contou-me porque só restaram
ele e Dona Creusa na Vila de Coroatá:
- Nos
tempos das vacas gordas, isso lá nos anos de mil novecentos e vinte e poucos,
quando caruá aqui era que nem mato, tinha fábrica e tudo mais – o senhor até já
viu a velha prensa e o bueiro ali atrás - a vida até que era boa, até que
aconteceu umas disgraceras, ali naquele casarão de alpendre
todo destelhado e de janela azul. Lá morava Seu Antônio Vaz
e a família dele. Tinha a Dona Bina, mulher dele e duas filhas. Uma era
formosa, aprumada, mas muito das orgulhosa, foi até professora e ensinava ali –
apontou Seu Amantino, para os escombros de onde teria sido a única escola
de Coroatá - a outra coitada, era um estrupício, malarrumada e todo
mundo falava que aquela ia mesmo ficar no caritó, apesar de que, ela era moça
de muito bom coração, prendada, sabia fazer de um tudo da casa. Pois bem, o pai
delas era um sujeito de poder, porque era dono das terras onde tinha muito
caruá, da fábrica e muitas outras coisas. Só que era um homem entufado e muito
dos descabriado e também vivia encangado com uns capangas dele. Ninguém tinha simpatia por ele, porque ele vivia arrumando arenga
com um, com outro, parecia que tinha o diabo no corpo. Diz as más língua que
ele era coiteiro dos cangaceiros e que ele tinha negócios com o Virgulino
Lampião e por isso ele tinha as costas quente. Meu pai mesmo falava que viu
muitas vez o Lampião se arranchando por lá e teve até vez que ele trazia a
mulher dele, a Maria Bunita. Foi numa dessas que a filha formosa do Coronel do
caruá se engraçou lá com um homem do bando dele. O pai descobriu e achou que
ela foi deflorada pelo tal cabra e
muito enfurecido foi tirar satisfação com Lampião. Esse falou
que não precisava dele se molestar não, porque havia de fazer o cabra reparar o
dano e havia de casar com ela. Seu Antônio Vaz pensou bem e concordou, afinal
ele num ia querer a filha na boca do povo e depois o bucho dela podia crescer e
num tinha jeito de esconder. Combinaram até o dia do casório. Nesse
momento o interrompi e perguntei ao seu Amantino se a moça queria casar com o
cangaceiro, já que ela era tão orgulhosa, ao que ele respondeu:
- Vai escutando
o causo e já já o senhor vai saber. Depois de muita conversa com a
filha, com muita ameaça, ela falou pro pai que num carecia de casar não, que
ela ia embora pra capital e que se tivesse embuchado deveras, ela tinha quem ia
querer casar com ela por lá e ninguém precisava saber de nada. Disse também
quem era o sujeito, era um ricaço que vinha sempre comprar a produção da
fábrica, e que foi ele quem buliu com ela, então, se ela tivesse mesmo
embuchada, podia alegar que o filho era dele. E tem outra coisa, aquela era
a chance dele desencalhar a outra filha, para dar um castigo no cabra por ter
abusado da outra. O Coronel do caruá viu naquela história uma grande ideia e
assim armou tudo. No dia do casório, mandou a noiva cobrir a cara com um véu e
ela só podia descobrir depois que o padre falasse que eles já era marido e
mulher. A pobre da moça ficou sem entender, mas como morria de medo do pai,
aceitou e assim aconteceu. Quando o cangaceiro descobriu a farsa, que tinha
casado era com a moça desapetrechada, ele arrancou da peixeira e partiu pra
cima do pai da noiva, tentando furar o bucho dele. Ai a coisa ficou preta
porque virou uma guerra dos diachos. De um lado os capangas dele e do outro,
parte do bando de Lampião e foi tiro de espingarda pra tudo quanto é lado,
gente correndo e se escondendo. No final das contas ficou um bocado de gente
ferida e gente morta também. Entre os defuntos, lá estava aquela filha bonita do Coronel do caruá e a
esposa dele também, além de uns capangas e uns cangaceiros. Lampião e seu bando
caparam o gato dali, mas com uma promessa de que não demorava e ele ia voltar
para acabar com o resto do povo. O Coronel do caruá ficou numa tristeza de dá
dó e muito aperreado resolveu mudar daqui e levar a única filha que lhe sobrou.
Houve quem disse que essa foi a primeira vez que se viu falar que ele tinha
pedido perdão a alguém na vida: ele ajoelhou aos pés da filha e pediu a ela que
perdoasse e jurou que dali em diante, em outro lugar bem longe, ele ia fazer de
tudo para ela ser a moça mais feliz do mundo. Foram simbora e vez ou outra se
via o bando de Lampião rondando essas terra. O povo foi saindo de mansinho, uns
com medo, outros porque não tinha mais pra quem trabalhar e com os anos
passando o caruá foi perdendo o valor, porque a fibra do caruá, que era
muito usada, foi sendo substituída pelo agave. E por causa disso tudo, já
ta fazendo uns trinta e poucos anos, que sobrou mesmo só nós dois aqui.
Interrompi Seu Amantino
para perguntar por que todos foram embora e só eles ficaram. Ele, entre uma
pigarreada e outra olhou para aquela casa, suspirou e então me disse: -
Olhe, nunca contei isso pra ninguém, mais a minha hora ta chegando de partir
desse mundo e vou confiar no senhor, porque num quero levar esse segredo pro
outro mundo. Minha mãe era empregada naquela casa, desde mocinha trabalhou
praquela família. Logo depois que eles foram embora daqui, ela adoeceu e pouco
antes de morrer me contou um segredo. Me contou que eu era filho daquele homem
sem coração, o patrão, e que meu pai nunca ficou sabendo, nem ninguém mais, a
não ser o Coronel do caruá, orgulhoso como era, nunca que ia me reconhecer. Ai
ela me fez o último pedido e me fez jurar que eu ia cumprir a vontade dela: que
mesmo ninguém sabendo dessa história, eu era o verdadeiro dono de tudo por aqui
e que eu prometesse não arredar pé e tomar conta do que era meu, mesmo que
nunca tomasse posse de nada. E assim eu fiz moço, todo mundo foi simbora e eu
vou ficar aqui até o último dos meus dias. Nunca mais tive notícia daquela
gente e nem me interessa, só o que eu quero nessa vida é ficar aqui na paz com
a minha companheira e vigiar esse lugar que lá vai se acabando de velho, que
nem eu mesmo, e cumprir a promessa que eu fiz, ainda menino, para a minha santa
mãezinha.
Entre surpreso e
emocionado, ao escrever esse primeiro capítulo de meu livro de contos, UM FIO
ENTRE O REAL E A FANTASIA, percebi que, um lugar como aquele que parei apenas
para fotografar, completamente abandonado, em ruínas, guardava tantas histórias
vivas, que era possível ouvi-las detalhadamente, num rompante da imaginação, o
melhor substrato das inspirações de quem escreve ficção.
Publicação autorizada pela autora
6 comentários:
A cada texo postatado aumenta a indecisão para aescolha pela excelencia da literatura COM OS AUTORES CRIAM SUAS HO ISTÓRIAS!Parabérns aoautor!
Realmente, o conto faz jus ao título. A história se entremeia entre a realidade e a ilusão. Uma trama muito bem urdida pelo autor ou autora. Meus parabéns!
Um texto espetacular. Parabéns ao autor ou autora. Muito interessante e surpreendente!
Algo melhor que uma história bem contada? Entre o real e o fictício, fico com a boa qualidade do texto. Muito bom! Marina Alves.
Puxa, muito bom! Fiquei com vontade de ler o próximo capítulo :-) Boa idéia a de ter um escritor como narrador, gerando uma abordagem diferente das demais. Gostei muito, parabéns!
Gostaria de agradecer a cada um dos participantes do concurso e a todos os outros leitores que passaram por aqui e dispensaram um pouco de seu tempo e atenção para a leitura de meu texto. Obrigada!
Antes de encerrar o concurso, quando vi aqui os comentários, por questão de ainda ter que manter o anonimato, não pude me manifestar; aos que deixaram aqui os seus comentários, e também aos participantes que votaram em meu texto, meu sincero agradecimento. Obrigada!
Um grande abraço a todos
Celêdian
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